Crítica
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Sinopse
No ano de 1858, Edgardo, uma menino judeu de seis anos, é levado da casa de sua família pelas autoridades do papa Pio IX. Edgardo foi batizado em segredo pela sua babá quando ainda era um bebê, fazendo com que ele fosse obrigado a receber uma educação católica.
Crítica
Entre as muitas atrocidades cometidas pela Igreja Católica desde a sua fundação, o experiente cineasta italiano Marco Bellocchio escolheu retratar o factual rapto do menino Edgardo Mortara em O Sequestro do Papa. Nascido numa família judia em 1851, ele teve a sua guarda reivindicada pelo Papa Pio IX após a história do seu batismo cristão ter chegado aos ouvidos do então Sumo Pontífice. Sem muita satisfação, as tropas papais marcharam à casa dos Mortara e simplesmente separaram a criança dos pais e irmãos. Os captores alegaram que depois de ter recebido o sacramento do batismo (diga-se, sem o conhecimento da família), a criança precisava receber uma educação apropriadamente cristã. Bellochio pega um episódio aparentemente isolado de desmando católico para enfatizar a tirania de uma instituição que não respeita os demais credos e, durante um bom tempo, teve primazia até mesmo sobre as leis dos Estado. Em vez de observar toda essa confusão especificamente por meio da perspectiva de alguém, o realizador opta por uma abordagem mais geral, como se estivesse realmente pintando um retrato amplo da secular ingerência católica a partir do drama dessa família judia. A partir daí, de um lado, os Mortara tentam reaver o menino enquanto buscam informações a respeito do tal batismo, e, do outro, há maquinações da organização que reivindica legislar na Terra, ditada pelos desígnios de Deus.
Em O Sequestro do Papa vemos a luta do pai desesperado para encontrar brechas na influência da Santa Sé a fim de reaver o filho. Testemunhamos a dor aparentemente inesgotável da mãe privada de uma parte viva de si, encarada como a guerreira que tem suas forças gradativamente drenadas pela extensão dos tentáculos da Igreja Católica. Também ganhamos acesso privilegiado às tramoias da alta cúpula religiosa numa contenda que adquire contornos de cabo-de-guerra. Por fim, enxergamos o menino sendo disputado pelos adultos, rapidamente à mercê de uma lavagem cerebral que tem por intuito obliterar o judaísmo em prol da educação orientada pelos preceitos cristãos. Como citado anteriormente, Marco Bellocchio lança diversos pontos focais para contar essa história factual e escabrosa, alternando-os competentemente por meio de uma atitude cinematográfica bem mais tradicional do que se espera de um artista iconoclasta como ele. Bellocchio acostumou as plateias à sua coragem para encarar temas tabus e, às vezes, colocar em xeque instituições raras vezes confrontadas na telona com semelhante incisividade. Não é necessariamente o caso deste filme selecionado à 8 ½ Festa do Cinema Italiano 2024. Embora seja claro e constante o desacato à Igreja Católica, a mecânica da denúncia atende bem mais à produção de melancolia do que propriamente à afronta com ferramentas cortantes e cáusticas.
Marco Bellocchio opta por retratar o Papa Pio IX (Paolo Pierobon) como um mafioso centralizador, um gângster ciente da quase onipotência da sua vontade pretensamente validada por Deus. O líder religioso é ardiloso, manipulador e exibe um comportamento maquiavélico. Esse retrato quase caricatural do Sumo Pontífice contrasta com a inocência do semblante de Edgardo (Enea Sala), o vetor da disputa religioso-política na qual o cristianismo opera para asfixiar os demais credos em busca de soberania na Itália. A reconstituição de época é belíssima e a fotografia assinada por Francesco Di Giacomo reforça a sobriedade também garantida pela montagem de viés clássico a cargo de Francesca Calvelli e Stefano Mariotti. Bellocchio estabelece um constante tensionamento entre a superfície aparentemente controlada e as profundezas em ebulição. Por mais que certos personagens exteriorizem as suas frustrações e angústias, é nos âmagos de cada um que as batalhas acontecem de maneira mais violenta, com as pessoas precisando engolir a seco as injustiças chanceladas pelos poderes constituídos, a eles se submetendo. Quanto mais baixo na pirâmide social, mais os homens, as mulheres e crianças são obrigados ao silêncio e à resignação. Pena que em vários momentos o roteiro insista em reiterar tópicos anteriormente abordados, às vezes hesitando entre uma denúncia mais veemente e uma aceitação dolorosa.
Talvez o grande problema de O Sequestro do Papa esteja numa noção conformada de “o mundo é o que é” a partir desse olhar retrospectivo à História. Diferentemente do que havia feito em Vincere (2009), obra-prima na qual conferiu notoriedade a Ida Dalser, a primeira e invisibilizada esposa do ditador fascista italiano Benito Mussolini, Marco Bellocchio não manipula com a mesma maestria os aspectos melodramáticos até chegar à acusação categórica (e dura) dos mecanismos desonestos da sociedade. Ele parece sempre pronto a abandonar o sofrimento da mãe, por exemplo, a fim de mostrar outro item desse panorama generalista. Do mesmo modo, desloca rapidamente o seu interesse do calvário do menino prestes a passar por uma lavagem cerebral, retomando esse ponto de vista circunstancialmente em meio à abordagem de outras camadas dessa tragédia. Ao tentar valorizar todos os atores e as conjunturas desse fato histórico, o grande Marco Bellocchio parece aceitar o risco de ser superficial e pouco incisivo. Quando pensamos que as intenções do cineasta residirão na violenta disputa sociopolítica entre judeus e cristãos, na qual Edgardo é o prêmio ao mais forte do cabo-de-guerra, Bellocchio corta para o sofrimento dos Mortara, incapazes de evitar a arbitrariedade. As constantes trocas de pontos de vista enfraquecem um pouco a natureza pontiaguda da crítica ao passado nefasto da Igreja Católica.
Filme visto durante a 11ª 8 ½ Festa do Cinema Italiano, em junho de 2024
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