Crítica

Uma mulher se banha, sob o olhar atento do homem que a aguarda. Mas o que ele espera? Um velho está imóvel no meio da mata, e quando dele alguém se aproxima, tudo que ele tem a proferir são versos aparentemente desconexos, mas que nos seu desenrolar vão adquirindo um significado maior. Uma prostituta dança sem ânimo em busca de clientes, mas quando um por ela se interessa, ela cede somente até certo ponto, impondo resistência e levantando limites. No centro de todas essas ações está o andarilho, o homem sem nome que é protagonista de O Signo das Tetas, segundo longa da Trindade Dantesca ou Trilogia da Existência, do diretor Frederico Machado, que teve início com O Exercício do Caos (2013) e deverá se encerrar com As Órbitas da Água, a ser filmado.

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Diretor da Lume Filmes – uma das mais interessantes distribuidoras de cinema no Brasil – Frederico Machado revela no seu exercício como realizador o mesmo olhar apurado que demonstrava nas obras que escolhe para lançar sob seu selo. A imagem que constrói é precisa, sempre que possível simétrica, que perscruta o indivíduo em cena sem desculpas, invadindo sua pele como se buscasse pelo anseio da própria alma. Dividido em três capítulos – Signo, Hidropsia e Tetas – O Signo das Tetas é a jornada de um homem perdido em si mesmo, esquecendo-se da razão rumo a uma loucura que lhe é tão natural quanto o ato de se alimentar ou fazer sexo. “Minha primeira lembrança é das tetas de minha mãe, grandes e volumosas, oferecendo-se a mim”, diz ele a certo ponto. Temos um homem crescido como protagonista, e por isso tais dizeres logo remetem o espectador a sensações de luxúria e prazer. Mas, além disso, fala-se de sobrevivência.

Realizado de forma bastante livre – o roteiro ia sendo construindo à medida que se chegava a cada nova locação, incorporando na realização o mesmo espírito livre pretendido por qualquer filme de estrada – O Signo das Tetas abre espaço para uma improvisação controlada, deixando seus intérpretes soltos em um ambiente quase documental – como a parada religiosa/carnavalesca – porém guiados pelos escritos do poeta Nauro Machado (pai do diretor). Não há um roteiro fechado, com início, meio e fim. Há um prosseguimento, de algo que começou antes e quem sabe quando irá terminar? Este personagem central, interpretado com entrega por Lauande Aires, empenha essa trilha pelo interior do Maranhão em busca de memórias e lembranças, mas acima de tudo, perseguindo a si mesmo. Uma tarefa complicada, que resulta em um filme muitas vezes hermético e de difícil acesso.

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Dono de imagens belíssimas, que vão do despojamento natural ao controle absoluto da câmera, O Signo das Tetas revela um cinema autoral em última instância, que fala o que tem a dizer sem se preocupar com o receptor, exigindo deste a consciência de estar em contato com um discurso diferenciado. O esforço, de ambos os lados, comprova-se compensatório pela urgência de ousar, da força de se arriscar em busca de algo novo, alternando-se entre a angústia da solidão, do contato com a natureza, da fluidez da água ou do descaso do sexo. O leite que jorra também sacia, muitas vezes sem a imediata compreensão. É algo que cresce junto com a vivência, pois só essa oferece a experiência necessária para decifrar o que encontramos pelo caminho.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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