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Sinopse

Numa região do sertão, na divisa de Pernambucano com a Paraíba, se passa um fenômeno curioso. Pessoas nascem, vivem e morrem poetas, convivendo dia a dia com a arte da rima, entranhada no cotidiano da população, que perpetua a tradição ao longo de gerações. Aos versos de métricas exigentes fundem-se declamadores, sonetistas, cantadores, violas e o improviso. Além de Severina Branca, cuja noite é que tem sido testemunha de suas amarguras.

Crítica

O silêncio da noite é que tem sido testemunha das minhas amarguras”. Esses são os versos finais de uma das mais conhecidas poesias de Didi Patriota, repentista e símbolo de uma das regiões mais voltadas ao lirismo em todo o Brasil, os entornos do Rio Pajeú, entre Pernambuco e Paraíba. E é também desta frase que nasceu o título do segundo longa-metragem de Petrônio Lorena, que antes havia co-dirigido O Gigantesco Imã (2014), ao lado de Tiago Scorza. A dupla se separou, mas o cinema de Lorena parece ter permanecido intacto. Há um olhar muito simpático em cena, que direciona com carinho e atenção a quem se dispõe a ouvir. E assim nasce O Silêncio da Noite, um documentário sobre a arte da palavra, peça tão prostituta e servil de tantos usos que por vezes pensamos ter esquecido de sua verdadeira origem. Função, essa, resgatada aqui com delicadeza ou humildade.

Por quê há tantos poetas no Nordeste brasileiro? Essa questão nasce de uma observação voltada ao poeta-raiz, aquele que sabe se expressar através de modinhas, rimas e cantigas bem construídas, de modo quase imediato e espontâneo. Diz a lenda que há um fenômeno curioso sobre esse local. Basta o vivente beber das águas do Pajeú para se afeiçoar pelo verso. E assim a atividade se torna vocação, entranhando-se no cotidiano de uma população minguada, mas resistente. Lorena começa propondo uma contextualização. Estamos em São José do Egito (PE), mas logo há passagens também por Ouro Velho e Prata (PB). Não há um foco único, nem mesmo a pretensão de encerrar um assunto. Há apenas um ouvido, um olhar, uma atenção dedicada a ouvir histórias, contos e causos daqueles que já se foram, dos que ainda persistem e dos poucos que seguem praticando na ponta da língua. O passeio é solto e propenso a mudanças de última hora, tal qual o repente nasce e se desenvolve.

Canto para mim mesmo, e não pelo dinheiro”. Esta explicação foi dada ao filho que não entendia o apreço que o pai dedicava a uma atividade que pouco ou nenhum retorno lhe oferecia. Mas essa troca não podia ser avaliada num âmbito físico. A recompensa estava no prazer daqueles momentos vividos em companhia de outros que partilhavam de igual paixão. Era a alma lavada, vívida e renovada que compensava o bolso furado, a falta de reconhecimento ou mesmo as dificuldades do dia a dia. Dentre tantos que se deixaram levar por este amor, uma segue de pé: Severina Branca, a dita ‘Eleanor Rigby do Nordeste’, que foi musa e mulher da vida, poetisa e boêmia. Encantava e virava as cabeças dos homens que conheceu – todos, não por coincidência, também poetas. Ela foi inspiração para os versos que batizam o filme. E é, também, a alma dessa narrativa.

Ainda que Lorena não faça dessa presença a espinha dorsal do seu documentário, Severina nunca fica por muito tempo distante. Ela está ali, seja em suas palavras ou nas dos outros. Com a sua história ou naquelas que serviu como exemplo. Mais de 30 repentistas são ouvidos durante os pouco mais de 70 minutos do longa-metragem. Mas não é um acúmulo entediante. Pois estamos falando de poesia. E esta não poderia ser apenas declamada – se faz também visual, valorizando o ambiente e os cenários. Podemos nos ressentir de um roteiro mais estruturado, ou de um norte a nos guiar com maior precisão. Mas, por outro lado, não seria justamente essa a liberdade aqui perseguida?

Há, por fim, e nunca passível de esquecimento, um caráter de resgate e de ensino histórico sobre a prática do repentista em O Silêncio da Noite. O espectador é apresentado desde a questões técnicas, como a troca da quadra pela sextilha, como os preconceitos enfrentados pelos artistas – “na minha época, o jovem que quisesse ser repentista era logo taxado de preguiçoso, de vagabundo”, relata um, talvez não sem razão – até outras mais práticas, como as dificuldades em dar procedimento à arte em dias como os de hoje. É um filme dono de uma importância histórica, mas não apenas isso. É, acima de tudo, reflexo de um mundo em extinção, mas que segue vivo entre aqueles que nele habitam. Sensibilidade percebida não apenas nos que lutam para preservá-lo, mas também neste que se dedicou a registrá-lo. E isso até pode ser simples, mas nunca desprovido de méritos.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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