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Sinopse

Um grupo de amigos que moram na zona norte do Rio de Janeiro produz vídeos caseiros de humor. É por meio deles que os jovens experimentam um escapismo necessário diante da rotina de violência e durezas.

Crítica

Existem segmentos diferentes dentro de O Sonho do Inútil (2021). A primeira parte se encarrega da função descritiva: o diretor José Marques de Carvalho Jr. apresenta a si próprio e aos amigos do grupo Inútil, dedicado à produção de vídeos de humor. Eles introduzem a pureza desta forma de diversão onde o alvo nunca é o outro, apenas eles próprios. Partindo de inspirações tão díspares quanto Jackass e Buster Keaton, eles ateiam fogo na rua, quebram os dentes, pulam em fontes públicas - e registram cada intervenção com suas câmeras caseiras, para viralizarem nas redes sociais. Através desta iniciativa, buscam a fama, visam um horizonte simbólico de onipotência e inconsequência, além da possibilidade de superarem a condição adversa das periferias do Rio de Janeiro. Não resta dúvida em relação à seriedade do projeto quando descrevem o empenho e o orgulho dessa profissão. As produções audiovisuais dos amigos Douglas Santos, Aluã Topeira, Daniel Nascimento e Diego Ald vão além da mera brincadeira - e, por sua vez, o público é convidado a vê-los rolando escada abaixo e pichando muros pela cidade com respeito semelhante. Em primeiro lugar, o documentário retira das publicações caseiras o caráter de aleatoriedade ou banalidade - para os garotos, esta criação audiovisual está longe de ser inútil.

Cumprido o segmento introdutório, um segundo momento se dedica a compreender os dilemas pessoais de cada membro do coletivo, fora das gravações. Eles compartilham o desejo de ganhar dinheiro com a música, a luta contra a dependência de drogas, as passagens pela polícia, a tristeza em relação à mãe que o abandonou na infância, a morte de um colega. Passada a fase da leveza, o projeto adquire um teor grave e sentimental, com direito a trilha sonora comovente, um preto e branco solene e sequências de contemplação - o diretor se filma lendo na Internet a notícia do assassinato do amigo. Privilegia-se a psicologia dos protagonistas, em chave determinista: somos levados a pensar que buscam, através dos vídeos, a aprovação que nunca obtiveram dentro da família; que encontram maneiras lúdicas de superar uma exclusão social comum aos pais e avós; que respondem com rebeldia a uma organização social que jamais lhes tratou bem. Neste instante, as esquetes de camas incendiadas adquirem um caráter político pelo potencial anárquico de ruptura com os bons modos. Os amigos testam os limites da lei e do corpo, tendo como limite óbvio a morte. Suas performances em praça pública, transmitidas pelas redes, assemelham-se aos happenings, afrontando o sistema que os invisibiliza. Na forma de um clown trágico, ou de um monge praticando a autoimolação, tornam-se vistos. Eles constituem a matéria de seu espetáculo particular.

Um mérito considerável do longa-metragem decorre da abordagem da segregação pela perspectiva de quem a vive. Diversos gritos contra a desigualdade partem de cineastas de classe média, por motivos compreensíveis: eles possuem acesso às câmeras, ao conhecimento de linguagem, à estrutura de festivais e do circuito exibidor. Estes diretores falam, da melhor e mais sincera maneira possível, a respeito de uma situação com a qual possuem maior ou menor familiaridade, atingindo resultados expressivos - como negar o valor de Arábia (2017) ou Baronesa (2017), por exemplo? Assim, fazem aquilo que lhes cabe: expressam-se a partir de seu lugar de fala. Por sua vez, José Marques de Carvalho Jr. permite que os garotos assumam o controle artístico da narrativa, narrando as experiências com drogas, polícia e crise familiar em primeira pessoa. Fugindo ao fetiche da miséria, compõem uma obra cúmplice cujo olhar interno se volta tanto aos problemas quanto ao evidente afeto e ao senso de união entre os rapazes. O Sonho do Inútil funciona enquanto filme de amizades, construindo com fluidez, através da montagem paralela e repleta de elipses, a rica personalidade dos protagonistas. Ao final, conhecemos bem as particularidades dos membros do Inútil. A ambição cinematográfica visa as esferas sociológica e psicológica.

Em contrapartida, falta à obra acreditar no valor de sua imagem e em seu potencial de comunicação. O aspecto pedagógico se alia à redundância dos tempos de Internet, apostando no show and tell, o "mostre e conte". Enquanto o cineasta sobe as escadas para chegar ao estúdio de gravação, sua narração em off afirma: “Todo dia que eu venho para o estúdio, eu preciso subir essa escada aí”. Após várias demonstrações dos amigos produzindo materiais ao longo dos anos, escuta-se: “A gente tá correndo atrás do nosso sonho igual maluco, há um tempão”. Depois de frisar a falta de oportunidades, ressalta: “Os talentos sempre tiveram aqui. O que faltam são oportunidades”. Na função de narrador, o cineasta explica o impacto que pretende causar com o filme, seus pensamentos e sentimentos, embora as imagens falassem muito bem por si mesmas. O recurso insistente resulta numa experiência convencional demais, sobretudo para protagonistas capazes de ações tão provocadoras e violentas. O projeto se beneficiaria de levar esta agressão à estética - não pela fragmentação pop e acelerada, mas por associações inesperadas, diálogos entre cenas sem relação aparente, dissociações de som, experimentações de luz. Como seria a aplicação da filosofia Jackass à linguagem audiovisual, ao invés do conteúdo?

Por fim, resta uma experiência simples enquanto produção, onde os desníveis de som e os letreiros explicativos (“Rômulo, amigo do grupo”) se justificam pelo impulso de criar imagens a qualquer preço, o que também se traduz numa postura política expressiva. No entanto, O Sonho do Inútil conquista a proeza de apresentar o lado mais afetuoso dos garotos que ateiam fogo ao próprio corpo. A abordagem carinhosa das periferias, o olhar gentil aos meninos pichadores, orgulhosos de serem detidos numa delegacia, resulta numa afronta em tempos de punitivismo, de jornalismo pinga-sangue e de criminalização das minorias. Evitando julgar os personagens, o diretor os compreende pelo fato de se colocar em posição idêntica àquela dos colegas filmados. Os membros do Inútil ultrapassam a condição de homenageados ou objetos de estudo, convertendo-se em coautores. Este cinema político faz do outro um espelho de nós, propondo um senso de equivalência com os jovens que, por definição, não constituem o público médio dos festivais de cinema. Longe da abordagem antropológica, pela qual se transformariam em coletividade anônima, José, Douglas, Aluã, Daniel e Diego são valorizados por sua subjetividade e pela maneira inesperada de burlar aquilo que se esperaria socialmente deles. Ao invés de um cinema sobre a periferia, oferecem um cinema periférico.

Filme visto online no 10º Olhar de Cinema: Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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