Crítica


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Sinopse

Um jornalista é encarregado de cobrir os efeitos de um terremoto devastador em um vilarejo rural no interior da Índia. Com esperanças de que a matéria se torne sua grande possibilidade de reconhecimento profissional, ele viaja país adentro. No entanto, não encontra sinal algum da catástrofe. Aos poucos, o jovem começa a suspeitar de que os moradores estejam escondendo segredos sobre o que realmente ocorreu na região.

Crítica

O Tremor (2020) poderia ser descrito como exercício de direção cinematográfica. O cineasta Balaji Vembu Chelli atribui a si mesmo um desafio: de que maneira é possível sustentar a promessa de um espetáculo sem jamais concretizá-lo em imagens? Digamos que o personagem principal fosse um físico nuclear prestes a revelar um novo modelo de bomba atômica, mas o filme nunca quisesse apresentar a bomba, nem fornecer provas de que a invenção exista. Como preservar a atenção do espectador ao longo de uma projeção inteira, concentrando-se nos bastidores enquanto se evita o conflito prometido? Grandes diretores já efetuaram obras-primas baseando-se no prazer do mistério não resolvido e da cuidadosa frustração das expectativas (vide A Faca na Água, 1962, de Roman Polanski). No entanto, a subversão dos códigos implica em riscos, sobretudo no que diz respeito ao pacto tácito com o espectador: ao se anunciar uma grande revelação, tolera-se a espera até certo ponto, porém quando a materialização nunca ocorre, a brincadeira pode se virar contra a direção, amargando a experiência cinematográfica.

Ao menos, propostas arriscadas do gênero explicitam o caráter intrinsecamente manipulador da ficção (ou talvez seja melhor dizer de todo o cinema): embarcamos na jornada pela disposição a sermos conduzidos através de sentimentos e estímulos artificiais. O filme indiano escancara esta relação ao limite da profunda honestidade metalinguística – em última medida, o objeto de estudo do projeto constitui os limites do próprio cinema. Na trama, um jornalista recebe a missão de cobrir o terremoto numa cidade próxima, que teria destruído o vilarejo e provocado inúmeras mortes. A premissa mira alto: aguardamos não apenas o suspense, mas também as ferramentas do cinema-catástrofe. No entanto, algo soa estranho na longa travessia de carro do protagonista (Rajeev Anand) pelas montanhas no interior do país. Primeiro, a trilha sonora combinando ruídos, sons de animais e acordes sombrios envereda pela atmosfera próxima do sobrenatural. O terremoto teria sido causado por algum fenômeno fantasmagórico? Um sonho acordado do protagonista com a imagem de mortos e sons de ambulância evoca o possível delírio de grandeza: na intenção de adquirir a fama através do caso, ele projeta na suposta tragédia seu desejo de notoriedade. O início promete mortes já concretizadas e outras por vir, além de uma possibilidade de enganação ou loucura.

Deste modo, o terremoto se transforma em metáfora. O espectador mais astuto não deve demorar a perceber que Chelli não pretende revelar qualquer catástrofe propriamente dita, preferindo se concentrar na busca pela aldeia supostamente afetada, e na evolução de nosso imaginário a respeito. De certo modo, O Tremor alude a obras conceituais como a composição 4’33’’ de John Cage, uma apresentação de música sem música (guardando as devidas proporções entre o impacto histórico de ambos, é claro). Espera-se que o espectador construa sua imagem mental a respeito da grandiosidade por vir, participando ativamente do universo fictício enquanto co-autor. Embora o filme esteja repleto de tensão, ele foge à concepção clássica de suspense no entendimento hitchcockiano do termo. Costuma-se dizer que o suspense provém de uma assimetria de informações: ou o espectador tem muito mais informações do que o personagem, temendo por ele (quando vemos o assassino chegando por trás da vítima, por exemplo), ou o personagem sabe muito mais do que o espectador (quando precisamos juntar as peças para a revelação do segredo). No projeto indiano, entretanto, nem o espectador, nem os personagens sabem o que está acontecendo. Identificamo-nos com o protagonista pela ignorância compartilhada. Nós sequer sabemos mais sobre a personalidade deste jornalista, seu passado, seu método de trabalho etc.

O resultado se mostra parcialmente bem-sucedido em seu jogo de esconde-esconde. O diretor utiliza inúmeras ferramentas, discretas e progressivas, ao longo da jornada: as pistas falsas (o sonho apresentado como realidade, a possível perseguição de carros que não se concretiza), a banalidade do sobrenatural (um fantasma que não provoca revoluções na trama), o desenvolvimento da trilha sonora (típica do horror no início, e então jocosa, com fanfarras, rumo ao final), a multiplicidade de pontos de vista (os planos à distância sugerindo que o jornalista está sendo espiado, ou os grandes planos gerais, em plongée, favorecendo a solidão e o senso de desorientação). A névoa se torna cada vez mais espessa, a luz do dia começa a baixar. Por meio de provocações silenciosas, com pouquíssimos personagens em cena, sugere-se uma viagem sem volta. Uma das únicas certezas a respeito da tarefa de fotografar a tragédia diz respeito à armadilha em que o jovem está envolvido: todo o ambiente ao redor, do patrão aos moradores do casebre, se volta contra ele, sabotando-o sem que se saiba o porquê. Constrói-se um labirinto a céu aberto, uma paranoia da qual somos convidados a compartilhar.

O dispositivo possui suas limitações, seja pela repetição dos cenários (as estradas sinuosas), ou pela estagnação do protagonista sem nome. A conclusão constitui outra forma de frustração: teria sido muito fácil revelar um terremoto nos últimos minutos, no entanto Chelli se mantém fiel ao desafio de romper com promessas até os segundos finais. Por isso, a trama se interrompe num momento de suspensão literal, quando não se pode nem ir para a frente, nem voltar atrás. O grande plano, aberto e distante, nos convida uma última vez a projetar interpretações que o cineasta não está disposto a oferecer por conta própria. O Tremor se revela um cinema ousado enquanto conceito, sobretudo para um diretor pouco experiente, porém singelo em sua realização. Ainda há movimentos de câmera bruscos, uma exploração incipiente do cenário da floresta, a utilização pouco aprofundada das objetivas e da luz natural. Se fosse retirada a trilha sonora e a promessa do terremoto, as imagens se converteriam num drama em estilo documental sobre um rapaz viajando pelas estradas indianas. Este constitui um dos interesses irônicos do projeto: a tendência extremista de sugerir algo grandiloquente demais, para oferecer o mínimo possível, ou a vontade de criar imagens próximas do banal apenas para insinuar que elas escondem, dentro de seu contexto, uma revelação excepcional. A recompensa ao espectador dependerá da capacidade de mergulhar no prazer do cinema pelo cinema.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Bruno Carmelo
7
Francisco Carbone
4
MÉDIA
5.5

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