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Crítica


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Sinopse

Mesmo que não queiram admitir, dois ex-amantes ainda se amam muito. Uma série de encontros entre eles deixa ainda mais clara essa verdade que ambos querem manter escondida por medo de se machucarem de novo.

Crítica

Eis que uma peça de teatro escrita por um cineasta, Éric Rohmer, chega aos cinemas novamente, mais de 30 anos após a sua primeira adaptação. O próprio autor tinha filmado o espetáculo, mas agora a portuguesa Rita Azevedo Gomes imagina outra disposição ao drama amoroso, em linguagem distinta. Ao invés do palco cênico, opta por uma casa isolada no campo, onde os poucos cômodos visíveis ao espectador se reconfiguram durante o processo: o salão se torna sala de jantar, um espaço tomado pelo piano, e um cenário vazio quando necessário. Não foi preciso fazer trabalhos ostensivos de modernização para trazer o texto aos anos 2020, pois se trata de um encontro marcado por conflitos universais e atemporais: amar sem ser amado, um romance que se aproxima da amizade, o ciúme do namorado. Dois personagens dominam a quase integralidade da narrativa: Paul (Pierre Léon), um homem recluso e obcecado por música clássica, e Adélia (Rita Durão), a grande amiga com quem ele se relacionou, um dia, e espera ter em seus braços de novo. Mas a mulher tem seus amantes, e ao longo de sucessivos encontros na casa dele, expõe sua felicidade e dúvidas quanto aos rapazes mencionados somente em terceira pessoa. Seria crueldade da parte dela expor seu afeto por outros, ao sujeito que claramente ainda a ama? Seria um gesto de proximidade, de confidência — uma prova da “ternura” de que ela tanto fala?

A cineasta introduz alguns elementos curiosos no intuito de provocar ruídos na linguagem. Agora, os protagonistas são meros personagens fictícios no filme de um cineasta espanhol excêntrico (Adolfo Arrieta), que os condiciona a atuar de maneira ora demarcada, ora livre. O aspecto de metalinguagem faz com que as interações carreguem certo distanciamento, afinal, o espectador é constantemente avisado de que aquele amor não é real. Os atores se divertem com o teor das trocas verbais, entre uma entrega mais firme diante das câmeras, uma fala despojada durante os ensaios, e uma segunda tomada diferente da primeira, após a decisão da equipe por novos enquadramentos e movimentos de câmera. O longa-metragem brinca com as fronteiras entre a gramática teatral e aquela do cinema, além dos diferentes níveis da ficção dentro da ficção. Talvez o público se pergunte, em alguns momentos, se os atores já estão gravando, ou apenas passando o texto uma última vez; e se aquela conversa íntima nas coxias constitui uma confissão real de carinho entre os atores, ou apenas uma entrega dedicada de ambos ao tema da paixão. O diretor fictício fornece poucas indicações à sua dupla, visando apenas provocar atritos e colocá-los em situação de tensão capazes de imprimir no jogo de ambos. “Vocês estão perfeitos, mas não está dando certo”, ele reclama, e depois decide que, terminadas as filmagens, precisará “começar tudo de novo”. “Por quê?”, pergunta Pierre Léon, desesperado. “Por que sim. É necessário”, responde o autor misterioso. Pelo visto, a crueldade vai além do domínio dos romances.

A composição de Mozart mencionada no título se presta a outras interpretações, em paralelo. Os trios dominam o discurso: existe o óbvio trio formado por Adélia, Paul e o diretor, observando-os; mas também aquele composto pela mulher, o amigo desiludido e o namorado de quem ela sempre fala (Rodrigo ou Tito). É possível que o último vértice se complete com o espectador, única testemunha de todas as interações, mesmo quando o diretor está ausente. Cita-se, em paralelo, a trinca composta por amor, ternura e paixão, compreendidos enquanto partes de um ideal inalcançável — os protagonistas nunca obtêm os três ao mesmo tempo. De certo modo, existe uma dança de poderes e afetos, onde às vezes a amiga toma o controle da conversa, e às vezes, vê-se dominada pelo outro. O fato de estarem sempre na residência de Paul também cria um desnível nas situações, que o roteiro explora bem: é favorável a ele manejar os espaços e as bebidas, mas seria pertinente para ela chegar e sair quando bem entender. Rita Azevedo Gomes combina as facilidades do cinema digital, marcado pela câmera simples e a produção ágil, conveniente em tempos pandêmicos, com o prazer de um cinema clássico, posado, de atores dominando a cena. Ela opta por longos planos fixos, onde a dupla central aparece de corpo inteiro, sob os fundos de cor neutra. Eles interagem pouco com objetos e móveis — em geral, sentam-se no sofá, nas cadeiras e no chão, conversando à vontade.

Apesar da rigidez formal (não existe um único close-up digno deste nome, apenas quadros um pouco mais próximos dos rostos), a interação de ambos transmite descontração: eles se veem por acaso, numa troca de duração indeterminada, sem objetivos precisos. Ninguém interrompe os planos alheios, e nenhum dos dois está ocupado com afazeres distintos: Paul e Adélia dedicam-se um ao outro por completo enquanto estão juntos. Eles conversam sobre seus sentimentos, a música clássica, as invejas, rancores e esperanças. Às vezes, Gomes acena discretamente ao cinema fantástico: um piano toca música sozinho, o rádio se liga num estalar de dedos, um porco perambula pelo cômodo vazio, em luz esverdeada. Estes fragmentos constituem pequenas licenças poéticas, incapazes de romper com a estrutura austera da obra, mas lembrando a existência de uma magia inerente a toda história de amor. Os atores, foco absoluto da obra, entregam-se com uma dedicação serena, sem arroubos de vaidade. Aliás, o projeto inteiro representa um exercício inchado (em duração) de modéstia narrativa e de ponto de vista: montagem, fotografia, direção de som e direção de arte se fazem discretos, quase imperceptíveis; já Rita Durão e Pierre Léon compreendem as sutilezas do jogo cinematográfico, em registro distinto do teatro. O resultado será coeso, linear, num ritmo inabalável da primeira à última cena — razão pela qual tantos espectadores abandonaram a sessão antes do final, supõe-se. A autora evita se render ao ritmo pop e divertido da contemporaneidade, estimando que a ciranda sentimental necessite este tempo dilatado. Este é um cinema adulto, tão pesado (em reflexão filosófica) quanto leve (em escopo de produção), como raramente se encontra no cinema atual.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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