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Crítica


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Sinopse

Incumbida de tomar conta de seu sobrinho Alexandre, Josefina viaja para a região do Douro, em Portugal. Recém-chegado à adolescência, ele anseia por liberdade, o que engatilha um embate geracional. O conflito ganha outras tintas quando uma pessoa retorna para reclamar sua herança.

Crítica

O luto possui uma estética particular no franco-português O Último Banho (2020). Josefina (Anabela Moreira), mulher religiosa prestes a confirmar seus votos, recebe a notícia da morte do pai, mas não parece comovida com a descoberta. Percebe-se pelo silêncio a existência de traumas antigos com o falecido. Numa viagem de trem, rumo à casa familiar onde deve cuidar do sobrinho, ela chora quase imperceptivelmente, enquanto escutamos o barulho de um bebê chorando ao lado. O sofrimento da protagonista é abafado pelos conflitos alheios, como ocorrerá no filme inteiro. O sobrinho Alexandre (Martim Canavarro), criado até então pelo avô morto, corre por colinas e machuca a pele nos barrancos, ao som de uma trilha sonora típica do suspense. Os sentimentos soam deslocados, diferentes dos lugares-comuns, seja reprimidos, seja manifestados com violência pelo ambiente ao redor. Na saga de martírios, a pele de tia e sobrinho sangram em decorrência de atos voluntários de ambos (as mãos e pés esfolados dele, as coxas torturadas dela). Na dificuldade de expiarem o trauma, seja por imaturidade emocional do menino, ou por prudência e modéstia da adulta, eles transferem ao corpo a dor que sentem.

A relação com o corpo, justamente, torna-se essencial por se tratar de duas pessoas em processo de restrição ou abertura ao mundo. A mulher está prestes a oficializar os votos de castidade, abdicando dos prazeres mundanos. O adolescente quer namorar e frequentar festas com os amigos. O diretor David Bonneville efetua a escolha interessante por um personagem de 15 anos de idade, quando ainda pode ser considerado criança legalmente, porém apresenta desenvolvimento e desejos de adulto. Em consequência, a presença da tia religiosa mostra-se inconveniente para ambos: o ato de dar banho no rapaz machucado soa como uma altruísta, embora carregado de erotismo, já a possibilidade de dormirem na mesma cama pode ser interpretada enquanto carinhosa ou sexualmente ambígua. Os sentimentos da protagonista em relação a Alexandre compõem um rico universo de sensações, beneficiado pela atuação impecável de Anabela Moreira. Ela foge ao clichê da religiosa benevolente demais, demonstrando rispidez com o sobrinho, com as pessoas ao redor e, principalmente, consigo mesma. As pulsões paradoxais transparecem nos olhares, nas falas balbuciadas, ou ainda na sensualidade experimentada ao dormir nua e deslizar o corpo contra o lençol.

Tamanha complexidade dos gestos, olhares e intenções não seria possível sem o trabalho deslumbrante da direção de fotografia. Vasco Viana manipula a luz com resultado surpreendente: cada tonalidade amarelada de fim de tarde, cada fresta que invade a janela serve a desenhar a silhueta exata do rapaz na banheira, ou a perna do jovem adormecido sobre a cama, levemente iluminada pela luz do corredor. O encontro desesperado num bar adquire uma iluminação impressionista, alertando de certo modo ao perigo que virá. As movimentações de câmera possuem precisão milimétrica, valorizando as paisagens de maneira crua, ostentando granulação oposta à nitidez contemporânea. Mesmo a nudez sustenta um realismo notável em se tratando de um filme sobre o erotismo: embora Josefina e Alexandre tenham desejos pulsantes, o olhar da direção jamais objetifica qualquer um dos dois. Neste sentido, ele adota um distanciamento adequado à observação sem julgamentos de valor. Os protagonistas agem de modo contestável, sofrendo severas punições – a maior violência possível para uma criança e uma mulher adulta, em suas respectivas condições sociais –, porém o drama os retrata com respeitosa empatia.

O símbolo do banho, explorado pelo título e multiplicado ao longo da narrativa, converte-se no palco ideal para canalizar conflitos: a sujeira e a limpeza (tanto física quanto moral); o asseio esperado da boa conduta contra o prazer obtido no contato com o próprio corpo e com o corpo alheio. Cenas envolvendo a genitália de ambos, a limpeza dos cabelos e o contato das mãos produzem sequências intensas. Em paralelo, elas desenvolvem-se por si próprias: nenhuma cena de banho se assemelha à anterior, possuindo um significado distinto nas trajetórias de Josefina e Alexandre. Bonneville privilegia ações cotidianas (o banho, as fotos de família, o café da manhã, o ato de dormir e acordar) para investigar os reflexos do luto nos sucessivos momentos juntos. Embora seja claro que a tia está encarregada de cuidar do sobrinho abandonado, percebe-se a interdependência emocional entre eles. O diretor aposta num estilo muito mais simples do que sua premissa permitiria, evitando catarses e espetacularizações da dor. As sutilezas atestam a confiança na capacidade do espectador em interpretar significados postos em cena com parcimônia (o celular vibrando no bolso durante a festa, a tentativa discreta da tia em impedir que o garoto saia de casa).

A chegada de Ângela (Margarida Moreira, irmã gêmea de Anabela) infelizmente enfraquece a trama tão bem articulada em torno dos dois protagonistas. A antagonista rompe com as nuances apresentadas até então, sendo agressiva na postura corporal, na maneira de falar, na construção de uma vulgaridade excessiva. A dicotomia santa-prostituta entre as irmãs simplifica uma relação que parecia mais realista enquanto Ângela era construída pela sugestão sonora. A insistência no batom vermelho-sangue e nos gestos grosseiros à mesa faz dela uma candidata a “madrasta má”, com a evidente ironia de ser a mãe biológica de Alexandre. Entretanto, o filme resolve-se bem ao final, retornando à dupla de origem. Talvez algumas simbologias sejam artificiais – quantas vezes as releituras da Pietà serão exploradas no cinema? -, porém a cena final se conclui de modo coerente. Bonneville demonstra talento na condução de atores (Canavarro também desempenha seu papel com eficaz discrição), além da articulação entre som e imagem, entre ritmo e dinâmica dos planos. O Último Banho constitui um deleite estético, mas também um comovente estudo de personagens.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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