float(7) float(2) float(3.5)

Crítica


3

Leitores


2 votos 7

Onde Assistir

Sinopse

Cavaleiro respeitado e famoso por sua bravura, Carrouges se coloca em rota de colisão com Le Gris, guerreiro que se tornou um dos nobres mais admirados da corte. Tudo isso porque a esposa de Carrouges, Marguerite, é brutalmente atacada por Le Gris, embora o acusado negue a sua responsabilidade.

Crítica

Após uma bem-sucedida passagem pelo mundo da publicidade, Ridley Scott iniciou sua carreira no cinema com o drama histórico Os Duelistas (1977), quando já tinha 40 anos. Agora, tendo passado das oito décadas de idade, o cineasta retorna a esses mesmos cenários que lhe são tão caros – afinal, passeou por eles também em filmes como A Lenda (1985), Gladiador (2000), Cruzada (2005), Robin Hood (2010) e Êxodo: Deuses e Reis (2014) – em O Último Duelo, que até pelo título parece indicar a conclusão de um círculo. Bom seria se assim fosse. Sim, pois com a exceção do longa que ganhou o Oscar de Melhor Filme (mas não o de Melhor Direção), todos os demais ficaram aquém das expectativas. Mesma sina, aliás, que se repete nesse mais recente projeto. E não por falta de elementos – todos os mais necessários estão reunidos. A questão está em como orquestrá-los. E nesse processo se torna evidente um incômodo descompasso entre o que se propõe discutir e o que de fato se alcança, mais pela falta de vozes relevantes, como também pelo conforto em recair em lugares seguros e de interesse desgastado.

O Último Duelo tem sua narrativa construída a partir de uma única questão: ela foi ou não estuprada? A partir dessa dúvida, que é posta apenas a partir de um terço da trama, três pontos de vista são desenvolvidos: o do marido, o do violador e o da mulher. A inspiração é evidente, e parte do clássico Rashomon (1950). Mas ao invés de fazer como o mestre Akira Kurosawa e contrapor diferentes versões de um mesmo episódio, criando debate a partir de explanações conflitantes, o que se vê em cena é quase uma repetição do díptico nacional A Menina que Matou os Pais (2020) e O Menino que Matou Meus Pais (2020), que muito alarde criaram sem conseguir entregar material para tamanha discussão. O que Scott faz é O Menino que foi Traído, o Menino que Traiu e a Menina que Traiu sem querer ter Traído, tudo de uma só vez. Aos mais atentos e que não deixarem se levar por distrações ou controvérsias vazias, responder à questão proposta será simples, esvaziando a dúvida e eliminando maiores polêmicas.

Mais do que um filme de Ridley Scott – o que de fato não se pode negar, seja pela ambientação como pela excelência na parte técnica – O Último Duelo é, também, um longa nascido da pena de Ben Affleck e Matt Damon. Este é o primeiro trabalho dos dois amigos em conjunto desde a vitória no Oscar por Gênio Indomável (1997). Neste período, Damon escreveu outros dois longas para Gus van Sant, enquanto que Affleck roteirizou três projetos por ele mesmo dirigidos. Juntos, portanto, é a primeira vez em mais de duas décadas. Mas o tempo tem seu preço, e esse não se exime em cobrar o que lhe parece justo. Tanto um quanto o outro demonstram mais interesse nas intrigas palacianas, ou seja, no que muito se discute e imagina, no que de fato ocorre entre os personagens. Por mais que exista uma suntuosidade ao redor da história, esta é de muitos ditos e outros apenas supostos, mas de poucas ocorrências em si. Com tanto a ser preenchido, não é de se espantar os caminhos improváveis que terminam por ser percorridos, por mais que esses esforços nunca cheguem a se justificar. Há mérito na dupla ter chamado a cineasta Nicole Holofcener (indicada ao Oscar por Poderia me Perdoar?, 2018) para colaborar no desenvolvimento das personagens femininas. Mas o conceito parte deles, e qualquer esforço dela termina por ser suplantado pelo que os rapazes propõem.

Para começar, é importante estar atento à própria estrutura da narrativa: fica-se a par primeiro das versões masculinas, para somente depois a mulher ser ouvida. Em segundo lugar, se um capítulo se chama “A verdade segundo sir Carrouges” e o seguinte é “A verdade segundo Le Gris”, o terceiro, apesar de ser batizado como “A verdade de acordo com Marguerite de Carrouges”, logo se percebe nos letreiros um apagamento da continuação “de acordo com Marguerite de Carrouges”, restando apenas... “a verdade”. Há, portanto, alguma dúvida sobre quem está, de fato, fazendo uso da sinceridade? Porém, o mais complicado vem no passo seguinte: quais as reais distinções entre um relato e outro? Quando o espectador é apresentado ao que foi visto por sir Jean de Carrouges (Damon, em composição equivocada), escapa a ele justamente o ponto crucial da discussão: o marido estava ausente quando a violência teria ocorrido. Portanto, pouco tem a acrescentar. Já seu companheiro de batalhas, porém constante motivo de complicações, Jacques Les Gris (Adam Driver, o melhor em cena, em papel pensado originalmente para Ben Affleck – esse, por motivo de agenda, acabou ficando com uma participação coadjuvante por demais afetada), oferta a quem quiser ouvir sua visão de mundo: e ele também não está mentindo. Segundo seu entendimento, não houve agressão. Mas qual o interesse de ficar ciente do que o homem tem a dizer quando a questão em debate é intrinsicamente feminina?

Le Gris e Marguerite (Jodie Comer, mais no papel da vítima do que como uma peça de voz ativa) estavam, sim, atraídos um pelo outro. Ela enfrentava problemas no casamento, e para ele talvez fosse somente mais uma conquista, talvez não – pouco importa. O que não se discute, porém, é que quando, enfim, ficam juntos, ela resistiu até o último instante – em ambas as versões isso fica claro. Qual a razão, portanto, de tentar jogar uma dúvida quanto ao que ocorreu ao espectador? Pior: quando, finalmente, o tal ‘último duelo’ se impõe, esse é entre o marido traído e o galanteador abusivo, num embate que se dá em “nome de Deus”: ou seja, depende de quem ganhar o confronto decidir se a mulher estaria falando ou não a verdade – Ele é quem estaria decidindo, portanto. Uma terceirização de responsabilidades, como se não fosse possível aos homens a avaliação do ocorrido. Sim, o resgate é de um episódio que se passou no século XIV – e entende-se que os costumes e entendimentos daquela época são distintos dos de hoje. Mas fala-se a uma plateia de agora, e é com essa que se almeja uma relação. Por isso, tamanha dissimulação não encontra – ou, ao menos, não deveria encontrar – espaço. O Último Duelo se apresenta como progressista e avançado, mas sob o ponto de vista não daqueles envoltos pela discussão. Ou seja, trata-se de uma apropriação, por mais que seja envolta por boas intenções. E dessas, como bem se sabe, o inferno está cheio.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deRobledo Milani (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *