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Sinopse

Guiado por um instinto de rebelião e um equivalente senso de justiça, Ciccio Paradiso decide melhorar a vida dos trabalhadores italianos na década de 1950. Mas, tudo se complica quando ele se apaixona pela filha de um latifundiário, o que o coloca dividido entre dois mundos opostos.

Crítica

A imagem do revolucionário parece irresistível em O Último Paraíso (2021). Ciccio Paradiso (Riccardo Scamarcio), trabalhador explorado das fazendas no sul da Itália, entra num bar onde se encontra o dono de todas as terras da região. O patrão corresponde ao tipo asqueroso, violento, estuprador, com expressão ameaçadora. Ciccio cala as conversas no estabelecimento, e grita que o povo não pode mais ser explorado. Chega de lucrar em cima do suor dos pobres! “Parem de fazer negócios com ele!”, exclama aos colegas. Surpresos, os lavradores perguntam a quem venderiam seus produtos se fossem boicotados pelo barão. “Eu compro!”, Ciccio se replica. O herói jamais teria condições financeiras de arcar com a bravata, e o roteiro tampouco exige que ele cumpra as suas promessas. Na cena seguinte, a proposta terá sido esquecida. No entanto, a iniciativa vale pelo gesto retórico dos “pequenos homens” diante dos poderosos. Neste melodrama, reunir o povo, conscientizar os trabalhadores e tomar os meios de produção se tornam pensamentos secundários. Primeiro, gritam-se as injustiças aos quatro cantos, pela boca de um protagonista tão corajoso quanto tolo.

Resta dizer que o moço está apaixonado por Bianca (a brasileira Gaia Bermani Amaral), filha do patrão violento. Como poderia ser diferente, certo? O filme mergulha no imaginário romântico que os brasileiros identificariam com a novela das seis: histórias “de época” envolvendo amores impossíveis entre famílias inimigas, cenários campestres paradisíacos (e dá-lhe imagens aéreas, trilha sonora bucólica, pôr do sol e contraluz), gente simples de bom coração, acertos de conta em nome da honra. Até a figura improvável do irmão gêmeo desconhecido se intromete nesta trama, espécie de pot-pourri do campesinato. Scamarcio, também roteirista e produtor, oferece a si próprio o papel misto de Don Juan e Robin Hood, sujeito conhecido pela coragem, a beleza e a malandragem. Ciccio trai a esposa, esquece o filho pequeno e persegue uma jovem virginal, porém o roteiro frisa que este homem ama muito a esposa e o filho abandonados (vide o carinho na cabeça de ambos antes de partir). O ator-roteirista e o diretor Rocco Ricciardulli são bastante condescendentes com este personagem, descrito como homem bom em meio a figuras masculinas perversas.

“Quando estou com você, é como se o tempo parasse. E ouço música!”, declara à sua amada. “Se Bianca ri à noite, ela faz o sol nascer”, ele explica a um amigo. “Se alguém quiser guerra contra mim, vai arranjar confusão!”, ele grita aos outros homens, enquanto a imagem opera um zoom engrandecedor rumo ao seu rosto. O filme solicita ao espectador que aceite o teor edulcorado, e também uma visão anacrônica dos diálogos e das relações sociais. Na verdade, os criadores parecem se inspirar da luta dos mais pobres tão comum ao neorrealismo italiano (como se esquecer do rosto sofredor de Anna Magnani?), sem levar em consideração que tanto o cinema quanto a sociedade se modificaram profundamente desde então. Os filmes de Roberto Rossellini e Luchino Visconti refletiam sobre o impacto da Segunda Guerra Mundial numa Itália destroçada. Hoje, a evocação dos anos 1950 se converte na saudade daqueles “bons tempos que não voltam mais”, onde as pessoas se amavam em segredo sob as árvores e corriam pelos plantios. A nostalgia se afasta de um contexto sociopolítico: os moradores do vilarejo vivem numa bolha, o que permite o total desconhecimento da vida na cidade grande. Polícia, padre, presidente, prefeito e reais líderes de movimentos sociais estão ausentes. Existe apenas um herói contra um vilão, diante de uma dezena de habitantes acovardados – vide o silêncio geral face aos estupros conhecidos por todos.

O Último Paraíso promete uma grande transformação em sua segunda metade, quando o irmão gêmeo Antonio Paradiso (também interpretado por Scamarcio) entra em cena – sendo ele o “último paraíso” do título. Neste momento, a trama se abre ao espaço da cidade, ao passado dos irmãos separados pelo destino, e ao acerto de contas contra os vilões. O ator compõe um segundo personagem mais contido e misterioso, avesso ao romantismo. Paira certo mistério sobre o visitante do norte da Itália, e melhor assim: que exista alguma forma de ambiguidade nesta narrativa tão transparente. Ora, a sequência frustra as expectativas pelo viés do romance: ganha um doce quem adivinhar os rumos do novo Paradiso em relação à bela Bianca. O desfecho, onde a situação insolúvel se soluciona pela força do amor, constitui um gesto tão grandioso e absurdo (filmado em plongée, com os personagens coreografando seus passos numa sequência de sonho) que mesmo os folhetins da televisão aberta teriam abandonado em pleno século XXI. Chegando ao final feliz, o cineasta varre para baixo do tapete o pouco de realismo que lhe restava.

O sucesso popular deste romance em streaming deveria levantar alguns questionamentos. A ideia da viagem ao campo, com amores carnais e profundos constituiria o escapismo perfeito para uma sociedade doente de Covid e de solidão? (Vale lembrar que a Itália foi um dos países mais gravemente afetados pelo vírus em 2020). O retorno à família patriarcal, à linguagem audiovisual do século passado e aos atores mais velhos interpretando jovens adultos (Scamarcio tem 41 anos, e Amaral, 40) constituiria um desejo de fuga da contemporaneidade pela idealização do passado? Em tempo de crise, a nossa geração passa a invejar aquela dos nossos pais – ou pior, dos nossos avós? Há certa fetichização da pobreza enquanto sinônimo de pureza e de uma vida mais simples. O filme sustenta o desejo do amor eterno: na ausência do pretendente, entra em cena o substituto idêntico, espécie de reencarnação – sendo o tema espírita outro fator recorrente das novelas de época. Segundo Ciccio, o poeta bruto e sem educação, o amor incondicional torna a natureza atraente, “faz o sol nascer”. Trata-se de um cinema de fuga, tanto dos problemas quanto da realidade.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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