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Sinopse
Em O Último Pub, o dono de um bar luta para manter seu negócio vivo em uma cidade decadente. Quando refugiados sírios começam a ocupar as casas vazias da região, a tensão aumenta e a união dos habitantes locais é colocada à prova.
Crítica
O cinema de Ken Loach dificilmente pode ser considerado ‘épico’, uma vez que foram raras as vezes que se ocupou em retratar os grandes feitos de líderes, heróis ou governantes. Por outro lado, são s consequências destas ações que ocupam o coração de suas histórias. Afinal, ao invés de se colocar entre reis e presidentes, sua atenção está naqueles que ocupam o chão da fábrica, operários e soldados, pessoas comuns que lutam para sobreviver em meio às decisões quase arbitrárias dos que ocupam o poder. Em O Último Pub, filme que ele próprio declarou ser o último de sua filmografia, o realizador britânico de 88 anos não vai atrás de grandes mudanças, e acaba entregando ao público um longa similar a muitas de suas obras anteriores. E assim como acontece com outros mestres, como Woody Allen ou Martin Scorsese, tal constatação transmite consigo a certeza de se estar diante de algo acima da média, uma percepção tão tranquilizadora, quanto estimulante – por mais contraditório que tal observação possa se apresentar num primeiro momento.
Dave Turner, um ex-bombeiro descoberto por Loach durante a seleção de elenco para Eu, Daniel Blake (2016) – no qual acabou aparecendo em um papel menor, assim como no seguinte Você Não Estava Aqui (2019) – surge agora como TJ Ballantyne, o proprietário do Velho Carvalho, o tal pub apontado no título brasileiro. Porém, ao contrário do que se poderia imaginar pelo batismo em português, essa não é a história sobre um pequeno comércio local que, a despeito das memórias e lembranças deixadas em seus frequentadores ao longo de anos, se vê obrigado a fechar as portas frente ao avanço imobiliário e à gentrificação que acompanha novos conceitos de moradia e modernidade. Afinal, não são as coisas, os muros e paredes levantados ou mesmo os espaços construídos que interessam ao cineasta, e sim as pessoas que por eles transitam, ocupando-os e deles fazendo uso em nome de uma causa maior, que tanto pode ser o senso de comunidade como a manutenção de uma vivência que vem de muito antes, mas que agora parece estar em vias de extinção. São os sentimentos de muitos, e não a especulação de poucos, que fará a diferença.
TJ é um dos poucos dispostos a receber uma leva de imigrantes, exilados políticos que se viram obrigados a deixar uma Síria em guerra e encontraram resguardo por meio de uma ação política inglesa. Os meandros dessas decisões não interessam. O fato é que famílias inteiras estão chegando numa região que até pouco tempo era formada apenas por locais, por assim dizer, sem despertar interesse em turistas ou empreiteiras. A questão é que estes mesmos se esquecem que também não são dali, mas frutos de deslocamentos sociais, vindos da Irlanda, Escócia ou Gales, por exemplo, em busca de melhores oportunidades num grande centro como Londres e arredores. A diferença é que essas mudanças ocorreram há décadas, para não dizer gerações. É fato que estes que agora se acham donos passaram pelas mesmas dificuldades, talvez até maiores. Mas o lugar, uma vez posto, modifica-se tal qual sua configuração. E os temporários, se veem agora como donos. Os problemas que ao longo dos anos foram se acumulando, no entanto, precisam ser delegados a alguém. E quem melhor para assumir essa responsabilidade do que aqueles que recém chegaram?
“Quem come junto, permanece junto”, dizia a mãe de TJ com tanta frequência que tal verdade acabou eternizada nas paredes do Velho Carvalho. Porém, assim como outras crenças, essa também foi esquecida ao ser relegada ao salão dos fundos, por décadas trancafiado a ponto de não mais ser visto pelo seu potencial de união, mas como um incômodo do qual não se consegue livrar. Abrir estas portas é mais do que receber sem pré-conceitos (e o hífen aqui se justifica) os que mal conseguem se expressar na língua local e que tanto deixaram para trás a ponto de mal saber como lidar com o muito com o qual agora se deparam. A retomada desse espírito, não apenas de solidariedade, mas também de consagração, pode ser tudo o que precisam aqueles que não mais tinham para onde olhar. O choque é forte, e a provocação estará viva enquanto o foco estiver no detalhe, e não no todo. Porém, uma vez suplantada essa cegueira inicial, a capacidade mobilizadora daqueles dispostos a abraçar essa oportunidade irá se espalhar, não apenas entre os que estiverem diretamente envolvidos, mas por todos que ali se alimentam, em corpo e mente. Loach usa desse pequeno, absolutamente singelo, gesto de aproximação, para tecer um conto transformador e universal.
Causa grata surpresa o entendimento do diretor em não massificar suas impressões. Nem todos são maus, e mesmo os que se colocam desde o começo no lado “certo” das coisas também possuem suas falhas e pecados. Os antagonistas, que repudiam a aproximação e se recusam a enxergar o óbvio, são também capazes de arrependimento, e para isso não se faz necessário discursos motivadores ou gestos dignos de aplausos: bastam pequenas trocas de olhares, uma leve mudança de postura, e o necessário está dito – ou melhor, compreendido. O Último Pub fala de um país que se isolou na crença de que, sozinho, conseguiria prosperar, mas a verdade é que apenas ao estender a mão ao outro que aquele até então deixado para trás encontrará a força suficiente para dar o próximo passo. E este é um exemplo válido tanto lá quanto cá, ontem, hoje e amanhã. Ken Loach deixa como testemunho uma lição não apenas de vida, mas de existência, capaz de transpor crenças e tradições. Algo tão simples, mas de uma força inegável.
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