Crítica

Desde a invenção do cinema, a tragédia Fausto, de Goethe, foi uma das obras literárias que mais recebeu adaptações para as telas. De F.W. Murnau ao russo Aleksandr Sokurov, diversos cineastas realizaram suas versões da história do homem comum que faz um pacto com o diabo, e a produção italiana O Vinho Perfeito é mais uma a ter como inspiração o clássico do poeta alemão. Não se trata de uma transposição literal do poema, mas o longa de Ferdinando Vicentini Orgnani utiliza diversos elementos do texto de Goethe, e também de outras obras influenciadas por ele, como O Mestre e Margarida, do escritor Mikhail Bulgakov, além do próprio livro Vinodentro, de Fabio Marcotto, do qual tira seu título original.

A história acompanha Giovanni Cuttin (Vincenzo Amato), um tímido bancário que após o encontro com um misterioso homem, conhecido apenas como Professor (Lambert Wilson), vê sua vida mudar radicalmente. Giovanni conquista o cargo de gerente do banco sem nenhum motivo aparente e passa a desenvolver o gosto pela apreciação de vinhos. Logo ele se torna um dos maiores enólogos da Itália, participando de degustações e convenções, além de escrever para revistas especializadas e publicar seu próprio livro sobre o assunto. Mas a vida do personagem passará por uma nova reviravolta quando acaba sendo acusado do assassinato de sua ex-mulher, Adele (Giovanna Mezzogiorno).

O início do longa é bastante confuso, com os fatos apresentados fora de ordem cronológica, a partir do interrogatório de Giovanni feito pelo Inspetor Sanfelice (Pietro Sermonti) – um apreciador de vinhos e admirador do trabalho do acusado – e com um número excessivo de personagens coadjuvantes. Aos poucos a trama começa a levar os protagonistas a situações que beiram o surrealismo, assumindo os traços de conto faustiano pretendido pelo diretor. As aparições cada vez mais inusitadas do Professor, sempre acompanhado por seus três ajudantes, e os desdobramentos insólitos da investigação policial fazem com que as linhas da realidade e da fantasia se cruzem.

Diferente de Sideways (2004) – lembrança imediata em razão da temática enóloga – o longa de Orgnani não utiliza seu pano de fundo etílico para realizar um estudo de personagens. Apesar de ser uma figura simpática ao público, ajudada pela atuação segura de Amato, Giovanni nunca é mostrado de maneira aprofundada, assim como o Inspetor Sanfelice – apenas um divertido alívio cômico – ou mesmo o Mefistófeles persuasivo e enigmático de Wilson. São personagens superficiais, que parecem servir apenas de enfeites, sem maiores propósitos, neste retrato do mundo da degustação de vinhos. Orgnani utiliza uma movimentação de câmera elegante, com planos que valorizam ambientes como adegas, galerias de arte e clubes de golfe, para que o expectador se sinta parte deste universo de sofisticação.

A ótima fotografia de Dante Spinotti, colaborador frequente do diretor Michael Mann, sabe aproveitar a bela paisagem da região de Trento e, através de um trabalho bem elaborado de composição de cores, consegue não só sublimar a aura fantasiosa que o longa demanda, como também realizar a função de instigar o espectador através da imagem, para que esta aguce seus outros sentidos – paladar e olfato – e traduza as sensações das descrições que Giovanni faz das bebidas. Orgnani consegue atingir este objetivo, ainda que a profusão de nomes de vinhos citados seja exagerada, tendo significado apenas para enófilos experientes e dizendo pouco aos leigos.

O esforço gasto nesta busca por uma experiência sensorial, porém, esvazia a proposta de mistura de gêneros que parecia surgir no início do filme. A comédia é apenas moderada e o mistério – da inocência ou não de Giovanni – possui um nível quase nulo de suspense. Os meandros da obra de Goethe também são pouco explorados, já que não há um interesse concreto no mito do homem em busca do sentido da vida e da eternidade. No máximo sobram as insinuações sobre o homem que não resiste à tentação, materializada na beleza inebriante da femme fatale (Daniela Virgilio), que tem seu nome revelado apenas ao final da história. Tudo isto faz com que O Vinho Perfeito seja um produto mal balanceado: com toques de humor, notas de fantasia, um sabor suave e até agradável. Mas, infelizmente, não encorpado o suficiente para ser marcante de verdade.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
avatar

Últimos artigos deLeonardo Ribeiro (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *