Crítica


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Sinopse

Uma menina órfã cria uma conexão especial com o seu tio solitário de comportamento distante. Os dois se interligam pelo amor compartilhado pela música. Ele é um violinista que se expressa melhor por meio das canções.

Crítica

A Turquia aumentou o seu destaque internacional na área audiovisual desde o advento do streaming. Por exemplo, filmes e séries turcos antes desembarcavam esporadicamente por aqui. Mas esse cenário mudou com o surgimento das plataformas que pulverizam diariamente conteúdo do mundo inteiro em seus catálogos. E um dos traços significativos dessa produção mais recente do país que se estende do leste da Europa ao oeste da Ásia é o ato de carregar no melodrama para abordar temas duros: doenças terminais, crianças abandonadas, casais se separando, rompimentos familiares, aprendizados e redenções. O Violino do Meu Pai é mais um desses longas que apela ao exagero, sem qualquer vergonha aparente, para provocar lágrimas no espectador. Tomemos como sintoma disso a cena do irmão mais velho reaparecendo após 32 anos de ausência para contar ao caçula que está prestes a morrer e deixar uma órfã. Em vez de equalizar a mistura de sentimentos presentes na situação (espanto, tristeza, rancor, etc.) o cineasta Andaç Haznedaroglu aposta num acúmulo de desgraças e truques para extrair a emoção da plateia. Não basta o retorno inesperado, o anúncio da doença, a noção de que uma criança está prestes a ficar sozinha, pois o realizador ainda coloca na jogada uma música tristonha e alguém assumindo uma posição de frieza enquanto se afasta lentamente na chuva que surge...DO NADA.

Boa parte das cenas de O Violino do Meu Pai aposta não no equilíbrio dos ingredientes do melodrama, mas na reiteração meramente acumulativa de gatilhos. O protagonista é Mehmet, violinista virtuoso interpretado por Engin Altan Düzyatan que, a despeito de ter uma imensa sensibilidade como artista, parece uma pedra de gelo no trato íntimo com os demais. Mesmo visivelmente abalado pelo retorno do irmão mais velho, ele não se mobiliza ao ponto de dar o braço a torcer e sequer oferece a ajuda que o parente necessita. Esses traços de sua personalidade são tão reforçados e tipificados que o restante do filme fica previsível: é óbvio que essa celebridade passará por um trajeto de transformação a fim de aprender a partilhar e ser menos egocêntrico. Basta esperar e ver isso tudo acontecer. E O Violino do Meu Pai somente não é mais genérico por conta do talento da pequena Gülizar Nisa Uray, a atriz que vive a cativante Özlem. Depois de ser criada pelo pai (sua mãe morreu no parto, ou seja, mais uma tragédia), ela fica completamente desamparada e a mercê do tio que vê nela uma porta a antigas feridas mantidas no esquecimento. A atriz mirim coloca seu talento e carisma a serviço dessa menina destemida que será o grande vetor das mudanças do marmanjo endurecido. O filme é exatamente sobre esse trajeto de transição que a criança motiva a acontecer na vida triste do adulto.

A previsibilidade de O Violino do Meu Pai é resultado da adesão irrestrita do roteiro aos clichês desse tipo de história: Mehmet é o clássico obsessivo que utiliza o trabalho para camuflar as suas fragilidades emocionais; depois do longo período de resistência à responsabilidade de ser o novo tutor da garota, o musicista aprende gradativamente a ser melhor. Andaç Haznedaroglu aposta na soma grosseira de eventos dramáticos para tornar as coisas "emocionantes", sobretudo nos instantes de conflito. Os personagens são planos e suas motivações são tão rasas quanto as respostas durante os eventos importantes. Claro que é de marejar os olhos observar uma menina desesperada para encontrar um lar, uma criança ávida por ser amada após a perda de seu maior referencial familiar. Mas o filme não desenvolve essa demanda com atenção, preferindo diminuir a singularidade da criança em meio a fugas, resistências e questões superficiais. A quebra da casca protetiva do protagonista acontece artificialmente, por mais que o realizador se foque por bastante tempo na sua resistência. Para termos uma base à comparação, em linhas muito gerais, a premissa é semelhante a da série brasileira Manhãs de Setembro (2021-): uma criança reivindica amor e carinho do adulto desconhecido que a rejeita (e com quem tem um vínculo sanguíneo, mas ainda não decorrente da convivência). No entanto, na produção brasileira esse amadurecimento do elo que vai rompendo certas defesas é bem melhor desenhado.

Já em O Violino do Meu Pai os personagens coadjuvantes se tornam meros subsídios à evolução do protagonista como ser humano. Resolver as dificuldades matrimoniais ou aparar as arestas com a sobrinha diz muito mais respeito a ele do que a elas duas. A esposa e a menina existem simplesmente em função do que representam a Mehmet. Esse filme que avança empilhando mensagens simplistas e apelos ao choro fácil é tão previsível que prepara precocemente o terreno e assim telegrafa as tempestade e as bonanças. E isso se aplica também ao apaziguamento que antecede uma nova tormenta antes do final feliz. Novamente, as sutilezas são deixadas de lado. Quando pensava ter encontrado finalmente a felicidade, alguém passa mal e corre risco de morrer. A cena é um exemplo do tom copioso do melodrama: uma música incidental solene emoldura o surgimento do novo perigo. Claro que Andaç Haznedaroglu se inspira em filmes como O Garoto (1921) e A Malandrinha (1991), aliás com os quais guarda várias semelhanças. No entanto, ele não possui a genialidade de Charles Chaplin e tampouco a elegância de John Hughes para articular dramas e tragédias ao ponto de torna-los comoventes. Não basta mostrar uma menina vulnerável que acaba de perder o pai, é rejeitada pelo tio famoso e não pode viver com os amigos. Para o cineasta turco é preciso sempre saturar mais, sacrificando as delicadezas em prol da estratégia que visa, em algum instante, atingir a sensibilidade dos espectadores.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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