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Crítica


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Onde Assistir

Sinopse

Uma leitora voraz de histórias policiais descobre segredos horripilantes dos moradores de uma pequena cidade ao investigar por conta própria um assassinato. Será que o cadáver que ela descobriu tem relação com seu passado?

Crítica

Um dos mais recentes êxitos do tipo “difícil de explicar”, entre os filmes lançados pela Netflix, O ‘W’ da Questão é um suspense hipercolorido que acontece numa pequena e pacata cidade da Polônia. Nele, Magda (Anna Smolowik) é uma dona de casa que encontra um cadáver ao passear por um bosque ermo. E a primeira pergunta que surge é: qual a identidade da desconhecida morta que carrega no pescoço uma pista sobre o passado da protagonista? Magda é descrita pela sinopse como uma amante da literatura policial que se embrenha na investigação munida de unhas e dentes. Primeira fragilidade gritante: essa característica aparentemente essencial de personalidade não é desenvolvida pelo cineasta Piotr Mularuk. O fato de ela ser abelhuda, citar Agatha Christie numa cena (apenas numa cena) e ser mais esperta do que o amigo detetive seguramente não são suficientes para sustentar o elo entre a sua pretensa paixão por livros investigativos e a necessidade de desvendar o mistério. A meia dúzia de deduções tampouco são notáveis para garantir isso. E o que se sucede é uma coleção de desperdícios e banalidades que, para começo de conversa, comprometem completamente o enigma. São tantas as gratuidades, as situações mal articuladas e os acúmulos infrutíferos que passa a ser praticamente desimportante descobrir quem, por que e de que maneira matou a desconhecida.

Ao largo do caso a ser resolvido, O ‘W’ da Questão coloca a sua protagonista numa série de circunstâncias que poderiam servir para torna-la mais interessante e multifacetada. E isso não acontece por falta de consistência e aprofundamento. Magda é uma esposa submissa que reencontra a emoção no crime excepcional ocorrido numa vizinhança tediosa. A questão doméstica é posta (como boa parte das outras questões) sem nuances. O marido é um sujeito incapaz de uma palavra de carinho, estando para mais um boy lixo abusivo que impede qualquer voo solo da esposa. Evidentemente, a infelicidade media a convivência do casal, mas isso acaba se esvaindo como componente importante à medida que o filme privilegia (de modo cartunesco) as pistas a serem seguidas em busca do assassino. De vez em quando, Magda toca novamente no assunto de suas suspeitas de traição, mas apenas para cumprir um protocolo que está em aberto. Aliás, há uma ênfase superficial no fato de que, independentemente da possível traição, a relação é tóxica para a dona de casa. Podemos dizer que há um toque involuntário de moralismo e tradicionalismo mal disfarçado nisso. Afinal de contas, a mulher caminha à emancipação não por identificar que seu marido é um escroto, mas apenas ao descobrir que ele quebrou seus votos. E o filme vai enfiando personagens, dinâmicas e outros ingredientes sem a mínima relevância em cena.

Em dado momento, Magda é convidada (do nada) por um veterinário bonitão para trabalhar na clínica dele. A ocasião inicialmente serve para sublinhar o machismo do marido da protagonista, mas e depois disso? O galã tipificado (motoqueiro, tatuado, com trejeitos de galanteador) se torna um subterfúgio meio ridículo para mostrar que a investigadora amadora pode ser desejável por um homem com ar de motoqueiro selvagem. Tanto que as participações do sujeito se resumem aos instantes intermediários. Por fim, ele tem justificada a sua existência na desajeitada empreitada de salvação em seu cavalo branco disfarçado de moto irada. Achou que acabou? Não, tem mais. O ‘W’ da Questão ainda coloca nesse molho saturado pitadas como o policial besta (mas de bom coração) apaixonado pela protagonista; a melhor amiga excêntrica que fala verdades inconvenientes; o político com pinta de salafrário; a aluna do marido de Magda, outro estereótipo grosseiro de mulher interesseira e desprovida de inteligência; e o marido desta, sujeito difícil de definir para além da apatia adiante transformada repentinamente em agressividade. São tantos os vieses, tantas as idas e vindas, que se torna uma tarefa árdua identificar algumas delas ou sintonizá-las como imprescindíveis ao suspense. Há muita bagagem sobressalente, sem a qual o “voo” talvez nem ficaria tão melhor, porém certamente seria mais leve.

O ‘W’ da Questão é um suspense, mas sem voltagem de suspense; é um drama sobre a frustração matrimonial, mas sem ênfase no drama; é uma brincadeira com itens fundamentais do gênero, mas que não prevê homenagens e tampouco subversões; flerta com a comédia, mas sem ter qualquer graça. Ah, e ainda há outro personagem enfiado à fórceps na história (sem ele pouca coisa mudaria): o místico evidentemente charlatão. Com qual intuito ele está ali, mesmo? Piotr Mularuk poderia aproveitar esse acúmulo de figuras curiosas para reforçar a peculiaridade do local marcado por segredos insuspeitos varridos para debaixo dos tapetes de seus membros proeminentes. Mas, não. Magda percorre um longo caminho repleto de gratuidades, constituído de inúmeras circunstâncias sem graça/tensão/dramaticidade/suspense/vida. O objetivo dessa movimentação toda é garantir que, no fim das contas, ela durma tranquila ao saber o que aconteceu com a melhor amiga do passado e ao finalmente se livrar do marido grosseiro. Porém, entre um ponto e outro o espectador é brindado com toda sorte de forçadas de barra, guinadas convenientes e cenas completamente desprovidas de vivacidade. Já as atuações seguem essa pegada prevalente do “deixa a vida me levar”, ou seja, praticamente no piloto automático. E para coroar a fatura, surge o famigerado monólogo do vilão e um flashback bem explicadinho.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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