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Crítica

O arquiteto João Carlos está envolvido no projeto de restauração de uma igreja. O discurso, que conheceremos aos poucos durante o longa, apresenta um jovem profissional empenhado em defender uma ética do passado. Não é à toa que o vemos mostrando aos seus alunos, logo nas cenas inicias, a importância de um prédio histórico. A faceta pública do comportamento progressista, construída durante o primeiro ato - podemos substituir a arquitetura por uma dentre as milhares de causas que a sociedade exige hoje que se defenda para ser aceito -, percebe-se em conflito quando o mestre de obras encontra corpos enterrados no terreno que fora do avô do protagonista. A bondade não é apenas um discurso, mas uma virtude que não aceita comprometimento parcial. De um momento para o outro, o personagem se vê enredado entre a vontade - daquilo que quer realizar - e a culpa - do passado. A memória para a qual João tanto pede atenção e defende será a mesma que o apunhalará pelas costas.  

Estreia em longas de Gregorio Grazioli (dos curtas Miro e Monumento), com roteiro seu e de Paolo Gregório, Obra aposta no potência do visual e no peso da moral. No elenco, dois nomes importantes do cinema nacional concentram a atuação. Em vez de espalhar pelo roteiro inúmeros personagens, abrindo tramas secundárias, a escolha pelo foco e pela intimidade dramática são pontos altos.  O arquiteto Irandhir Santos enfrenta o mestre de obras Julio Andrade. A dupla é construída a parecer completamente distinta - social e moralmente. Irandhir é a classe alta, evidenciada desde o vestir vaidoso, em que o uso de sapatos sem meias denota o claro traço aristocrático, até a prática hedonista, em que  dormir com duas mulheres demonstra o prazer incontido daquele perdido nas próprias possibilidades. O personagem de Andrade, por sua vez, se dá pela descrição fácil e discrição. Ele aparece vestindo a roupa de trabalho. Quando em casa, está simples, e a presença da esposa e da filha transmitem a estabilidade necessária ao personagem. Se visualmente menor, é na indiscrição com que aborda o patrão, na acusação para que assuma a situação que se apresenta no terreno do avô, que o mestre de obras surge como gigante.

Enquanto antropologia da hipocrisia, Obra reflete as características do protagonista.  A vaidade estética com que Gregória apresenta o filme nos chega pelo ótimo trabalho de fotografia de André Brandão e a emulação extremamente competente de Fábio Baldo para o conturbado clima psicológico. Se em momentos, o filme nos remete à incursões pela memória como a de O Ano Passado em Marienbad (Alain Resnais, 1961), o andamento nos leva para mais próximo, até Boa Sorte, Meu Amor (2012), a excelente estreia de Daniel Aragão (com agradecimento nos créditos). As similaridades são várias. Desde vestígios temáticos, como a relação com gerações anteriores e a presença de Christiana Ubach, até o projeto visual, em que os enquadramentos tendem ao emolduramento e os planos à geometria, bem como a quebra de ritmo, que acontece pelo desdoramento do tempo e a hipérbole do espaço. 

Rastrear a referência, porém, sinaliza nada mais do que o valor do diálogo estabelecido pelo cinema nacional. Pois Obra é, antes de tudo, um trabalho estritamente autônomo. Isso significa que as exigências dramáticas e a postura estética são dados, avançam e são resolvidos dentro da estrutura do filme. A advertência quanto ao futuro a qualquer custo e o questionamento quanto à extensão da culpa são alicerces da arquitetura de Graziosi. A forma de colocá-los em cena vem pela sensibilidade em adicionar pequenos movimentos simbólicos. Para os mortos no terreno do avô, está a paternidade latente de João; para a indiferença moral, está a dor física da hérnia. Se obra é o construído; se vontade é o feito desde dentro; talvez o descompasso entre os dois surja da impossibilidade - pouco óbvia - de nos moldarmos alheios a tudo. A liberdade não figura isolada e pode não estar preparada para enfrentar o real - ainda quando sob escombros.

 

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