Crítica
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Sinopse
Deixando o namorado para trás, a marinheira Alice embarca num navio de carga. Além de ser a única mulher a bordo, Alice descobre que seu primeiro amor é o comandante da embarcação.
Crítica
O primeiro plano de A Odisseia de Alice, estreia na direção de longas-metragens da francesa Lucie Borleteau, revela rapidamente muito da essência de sua protagonista. Na cena, Alice (Ariane Labed), nada nua por águas cristalinas até o encontro de seu namorado, o norueguês Felix (Anders Danielsen Lie), que a espera nas rochas. Os dois fazem sexo e conversam intimamente sobre seus gostos sexuais antes que ela se despeça. Alice trabalha como engenheira especializada em cargueiros e irá embarcar em uma viagem de um mês no antigo navio no qual iniciou sua carreira. Nestes poucos minutos, já é possível notar os principais traços da personalidade da garota: independente, bem resolvida com seu corpo e com seu relacionamento e, principalmente, livre.
É sobre essa liberdade que Borleteau desenvolve sua trama, tendo à disposição o mar e os simbolismos que o acompanham. Este cenário propício para descobertas e desbravamentos contrasta com o enclausuramento encontrado por Alice no navio. Apesar de estar inserida em um ambiente majoritariamente masculino – ela é a única mulher da tripulação – e por vezes opressor, a personagem consegue se impor e encontrar meios para conservar seu espírito livre. Entre alguns olhares desconfiados e até uma tentativa de abuso sexual, Alice mantém sua atitude firme e encara os homens ao seu redor como iguais. Ela participa das brincadeiras com os colegas, conversa sobre sexo sem pudores e mostra competência em seu trabalho, reafirmando sua posição igualitária dentro do grupo.
A diretora trabalha muito bem o espaço cênico limitado do navio, que gera uma proximidade constante entre os personagens. Este retrato do cotidiano a bordo desta Torre de Babel marítima, com sua diversidade de nacionalidades, línguas e culturas, ajuda a enriquecer o entorno de Alice. Explorando habilmente as particularidades do local, Borleteau consegue também externar sensações diversas, do isolamento à fuga para momentos de prazer, como quando Alice se masturba em seu quarto. E ainda que a odisseia da protagonista não seja aventuresca como a de Ulisses no poema de Homero, e a presença de figuras fantásticas se limite às ilustrações feitas pelo namorado norueguês, a cineasta faz questão de inserir pequenos percalços na jornada, como acidentes com as máquinas da embarcação e até a ameaça de uma serpente marinha.
O olhar feminino atento de Borleteau é outra qualidade imprescindível para que o registro do universo particular de Alice funcione. A cineasta aposta no naturalismo e na observação, dando espaço para que a protagonista explore seu corpo e seus sentimentos sem interferências e pré-julgamentos. Na pele de Alice, Ariane Labed utiliza com sabedoria as ferramentas oferecidas por Borleteau, compondo a personagem com extrema sensibilidade e uma visível entrega física e emocional. Dos diálogos bem delineados e silêncios reflexivos à passionalidade das cenas de sexo, Labed transmite toda a força e também as fragilidades de Alice. Pois mesmo com sua postura segura, ela também enfrenta os conflitos comuns a qualquer pessoa que chega aos 30 anos.
Viajando pelos oceanos, Alice ainda procura encontrar seu lugar no mundo e, como marinheira atracando de porto em porto, reluta com a ideia de fixar raízes. Estes dilemas aumentam ainda mais quando ela reencontra uma antiga paixão, Gaël (Melvil Poupaud), o atual capitão do navio onde trabalha. Não por acaso, a embarcação tem o nome de Fidelio, numa homenagem à ópera de Beethoven, mas também numa clara alusão à fidelidade colocada à prova de Alice. Mesmo se entregando a este desejo adormecido, a personagem não deixa de amar verdadeiramente seu namorado, em quem vê a representação de seu “porto seguro”. Uma representação carregada de verdade e não apenas fruto de uma convenção, como no caso da irmã da garota, que mesmo sofrendo abusos do marido não o larga por “já estarem juntos a nove anos” e por “seu trabalho ser um tédio”, diferente do de Alice.
Prestes a atingir seu limite, tal qual o motor do velho Fidelio, Alice acaba encontrando algum acalento na leitura do diário do marinheiro a quem ela substituiu, e que morreu dentro do navio. O mergulho na mente do solitário falecido faz com que ela compreenda mais a si própria e enfrente seus medos e incertezas. Alice percebe que não pode fugir de quem realmente é e, mesmo navegando sem um rumo definido, não abre mão da liberdade que lhe é tão cara, traduzida por Borleteau e Labed em um singelo sorriso que preenche o último plano desta bela obra.
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