Sinopse
Crítica
Ainda que a comicidade, de um tipo que se presta a flertar abertamente com o absurdo, domine o tom geral de Oh Lucy!, um senso trágico também se faz presente neste primeiro longa da roteirista e diretora japonesa Atsuko Hirayanagi desde sua cena de abertura, quando um homem se atira para a morte nos trilhos do trem bala de Tóquio. No decorrer da projeção, outras tentativas de suicídio – mais significativas para os desdobramentos da trama – ocorrem, bem como o quase atropelamento de um cervo e de um homem. Essa mescla do humor com a sombra da tragédia à espreita impregna a rotina de Setsuko (Shinobu Terajima), mulher de meia-idade solitária, que vive em um modesto apartamento abarrotado de objetos, trabalha em um monótono escritório, e de quem o anônimo suicida da sequência inicial se despede, tocando-lhe o seio antes de seu salto derradeiro.
É somente a partir do momento em que aceita a proposta da sobrinha, Mika (Shioli Kutsuna), para assumir sua vaga em um curso de inglês, completando os meses restantes, que a existência cinzenta de Setsuko ganha novas cores. O motivo da transformação está no método pouco ortodoxo de ensino do professor, John (Josh Hartnett), que preza pela intimidade com os alunos, através de incontáveis abraços, e impõe a eles que assumam uma persona americana durante as aulas. Assim, Setsuko, vestindo uma peruca loira, passa a ser Lucy, e logo encontra no ato de encarnar a personagem um meio para dar vazão a seus desejos e angústias – vide a cena da festa no karaokê. Além desse sentimento libertário, a proximidade no contato com John, por quem se apaixona quase instantaneamente, também faz com que a protagonista sinta um carinho que há muito não recebia do mundo, inclusive da própria irmã, Ayako (Kaho Minami), mãe de Mika.
Ironicamente, Setsuko se vê na companhia inesperada de Ayako ao embarcar em uma viagem aos Estados Unidos à procura de John, que deixara o Japão dias antes. Tal acontecimento faz com que o longa enverede pela trilha dos road movies, com espaço aberto para jornadas de redescoberta e reavaliações de laços, e onde a diretora Hirayanagi se rende a certas convenções. A principal delas é encontrada na exposição dos contrastes culturais – de um lado o comportamento informal e expansivo norte-americano, do outro a rigidez e introversão orientais – pontuados em cenas como a do motel, na qual Ayako se incomoda com o barulho do casal fazendo sexo no quarto ao lado – “Parecem animais”, ela comenta – ou quando o tatuador interage com Setsuko na rua, indicando a caixa de correio para que ela envie o cartão postal que tem em mãos.
Por mais que siga boa parte dos itens da cartilha do subgênero de filmes de estrada, o roteiro de Hirayanagi – que expande a premissa de seu curta-metragem homônimo lançado em 2014 – visivelmente busca oferecer caminhos e resoluções capazes de surpreender, construindo situações que, mesmo podendo soar improváveis ou abruptas, transmitem sinceridade. Uma qualidade que, por vezes, esbarra na ingenuidade e na fugacidade – que o longa se encerre na mesma plataforma onde se inicia, não deixa de ser um representação desse aspecto efêmero, presente nas chegadas e partidas dos trens – sem necessariamente conseguir contribuir para uma construção mais densa dos personagens – a mágoa guardada por Setsuko em relação à irmã, pelo fato desta ter lhe roubado o namorado anos atrás, por exemplo, poderia ter maior impacto. Entre essas visíveis fragilidades, contudo, a narrativa se sustenta graças ao trabalho do elenco.
Além de Minami, como Ayako, e Kutsuna, na pele da jovem Mika, também merece elogios o ótimo Kôji Yakusho que interpreta Takeshi – ou Tom, nome que adota nas aulas de inglês – engrandecendo suas poucas cenas. Até mesmo Josh Hartnett, não necessariamente um ator dos mais versáteis, entrega um bom desempenho. Mas é mesmo Terajima que se sobressai, imprimindo uma humanidade tangível a Setsuko/Lucy mesmo nos momentos que beiram o ridículo ou nas atitudes mais discutíveis da personagem. Um atributo cativante que espelha o afeto com o qual Hirayanagi trata sua protagonista, diferentemente de quase todas as figuras que a cercam, da família aos colegas de trabalho. Essa combinação da entrega da atriz com a ternura do olhar da realizadora ganha força no ato final de Oh Lucy!, retornando a Tóquio e deixando para trás os altos e baixos da porção norte-americana da trama. O que culmina num desfecho em que o vislumbre trágico novamente dá as caras e onde Hirayanagi demonstra, ainda que sem um traço particular mais evidente, ser capaz de trabalhar o elemento emotivo com a sensibilidade característica do cinema japonês.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Leonardo Ribeiro | 6 |
Robledo Milani | 5 |
Francisco Carbone | 7 |
MÉDIA | 6 |
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