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Sinopse

No norte da Escócia, uma jovem mulher se apaixona e se casa com um dinamarquês que trabalha em uma plataforma de petróleo. Quando ele retorna ao serviço, sofre um acidente, quebrando seu pescoço e provavelmente o deixando incapacitado para o resto da vida. Nesta situação, ele pressiona a mulher a procurar amantes e lhe contar detalhes de suas relações.

Crítica

Quando se fala em Lars von Trier, muita gente pensa em suas experiências estéticas mais radicais, como Dogville (2003) e Os Idiotas (1998), ou em seus filmes mais recentes, quase metafísicos, como Anticristo (2009) e Melancolia (2011). Nesse contexto, pode ser surpreendente, e até edificante, conferir de perto o filme que projetou Von Trier para o mundo, faturando o Prêmio Especial do Júri de Cannes e uma indicação ao Oscar: Ondas do Destino. É uma oportunidade, por exemplo, para ver um Stellan Skarsgard ainda jovem, num papel desafiador. E Emily Watson, num tour de force arrebatador que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de melhor atriz naquele ano. Mas, mais do que tudo, é uma oportunidade para pensar sobre a relatividade de conceitos como a bondade, o amor e a comunidade.

A trama, dividida em um prólogo, oito capítulos e um epílogo (num estilo que Von Trier repete até hoje), conta a história de Bess (Watson). Nativa de uma pequena vila da costa escocesa, a garota decide se casar com Jan (Skarsgard), um dinamarquês que trabalha numa plataforma de petróleo. Se no começo a distância imposta pela ocupação do marido parecia ser um fardo para a histérica, perturbada Bess, a relação ganha contornos ainda mais sombrios quando Jan sofre um acidente que o paralisa. O fato ocorre logo após a moça orar fervorosamente, pedindo a Deus que trouxesse o marido pra casa, o que detona uma reação em cadeia de culpa, exigências e crise de fé.

Desde essa época, Von Trier - que assina o roteiro com Peter Asmussen e David Pirie - já se interessava pela degradação humana, especialmente aquela advinda da constrição social e que recai sob a sexualidade. Assim, a religiosidade, retratada na figura de uma igreja e seus sacerdotes, terá um papel decisivo para o desenrolar da sina de Bess. Esta, por sua vez, embora esteja longe de ser um exemplo de equilíbrio, nunca tira o amor ao próximo, especialmente ao marido, de suas prioridades, o que, curiosamente, a leva num sentido diametralmente oposto daquele instituído pela igreja.  Um jogo de forças que se intensifica ao longo da trama e, eventualmente, talvez retire um pouco da fé na humanidade que o espectador possa ter.

A estética de "câmera na mão", a textura de vídeo da imagem e os enquadramentos intimistas sugerem uma proximidade que situa quem assiste ao filme como mais um dos habitantes da cidadezinha em que ele transcorre. As cenas iniciais (de um casamento, que lembra O Casamento de Rachel, 2008, de Jonathan Demme, e a primeira parte de Melancolia, do próprio Von Trier), por exemplo, parecem saídas de um vídeo caseiro familiar, bem comuns nos anos 1990, aliás. Isso pode, eventualmente, sugerir um tom acusatório por parte do longa, que divide a culpa e o infortúnio com seu público. Nenhuma injustiça, no entanto, caso este mesmo público se questione sobre como agiria nas situações ali retratadas.

Outro destaque interessante são as "cartelas", telas de transição entre um capítulo e outro. Sempre mostrando paisagens de uma beleza deslumbrante, fotografadas em estilo "tableau vivant", trazem trilhas sonoras que vão de Elton John a Bob Dylan, imprimindo um tom melancólico e saudosista, porém extremamente familiar ao longa. E há Emily Watson, que cria uma Bess tão real, tão perturbada e perturbadora, tão pura em suas crenças, que se torna impossível não reagir emocionalmente a sua presença na tela. Nem a direção notadamente controladora de Von Trier foi capaz de apagar (talvez tenha até potencializado) alguns trejeitos que a atriz dá a Bess, tornando-a quase debochada, quase uma caricatura do que deveria ser. Curiosamente, isso a torna também mais real e parecida com alguém que poderia ser uma vizinha ou uma prima distante.

Na medida em que a sina dos personagens vai se esboçando e as tais Ondas do Destino quebram na praia, fica um nó na garganta, um choro engolido, que muita gente não saberá dizer se é de alegria ou de tristeza. É um dos primeiros sinais de um Von Trier tão descrente na humanidade que, anos depois, veria em sua extinção o único alívio para uma existência atormentada. Sorte do público (e dele) que o diretor saiba canalizar esta apatia por vias estéticas. No caso de Ondas do Destino, por exemplo, fez surgir uma obra essencial sobre o amor, a bondade, a humanidade e sua leveza insustentável.

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é jornalista, mestre em Estética, Redes e Tecnocultura e otaku de cinema. Deu um jeito de levar o audiovisual para a Comunicação Interna, sua ocupação principal, e se diverte enquanto apresenta a linguagem das telonas para o mundo corporativo. Adora tudo quanto é tipo de filme, mas nem todo tipo de diretor.
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