Crítica
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Sinopse
Sandra é mãe solo, viúva e cuida do pai doente. Enquanto administra suas turbulências familiares, ela se reaproxima de Clément, um amigo que não via há tempos. Embora ele seja casado, ambos começam um caso amoroso.
Crítica
Mia Hansen-Love é uma das mais respeitadas cineastas francesas em atividade atualmente. Filmes como O Que Está Por Vir (2016) e A Ilha de Bergman (2021) consolidaram seu nome por um olhar interessado em seus personagens, ao mesmo tempo em que se revela disposto a confrontá-los com situações inusitadas e até mesmo insuspeitas. Estes dois vieses se manifestam mais uma vez em Uma Bela Manhã. Porém, tudo o que antes adquirira caráter particular e até mesmo fantástico, dessa vez recai nos pequenos dramas de uma vida absolutamente comum, ainda que não desprovida de interesse. A identificação com a audiência, como se percebe, é imediata. Mas, por outro lado, carece do elemento revelador capaz de elevar a narrativa à condição de pertencimento e desejo, pela qual se anseia tomar parte. O que se vê é, na maior parte das vezes, tão deprimente quanto humano, tal qual qualquer um na plateia poderá se deparar no seu cotidiano pessoal. O comum, enfim, toma conta. E se no final de tanto choro e lamento até mesmo um tranquilo e ensolarado amanhecer pode parecer recompensador, é porque até esse ponto tanto foi mitigado que, quando o esgotamento se aproxima, o mínimo suspiro parece ser capaz de fazer diferença.
Uma Bela Manhã vive – e morreria, caso a escolha tivesse sido outra – nas costas de Léa Seydoux, uma atriz que a cada novo trabalho tem revelado uma versatilidade tão envolvente quanto reveladora. É difícil conceber que a Sandra que aqui aparece tendo que lidar com o banal da manhã ao anoitecer seja vivida pela mesma mulher capaz de despertar paixões com cabelos azulados, levar o agente secreto mais famoso do mundo a considerar a aposentadoria ou acabar com encantamentos dignos dos contos de fada. Seus dias são tomados por compromissos com a filha pequena, o pai senil, a irmã um tanto distante, a mãe controladora, um amigo que retorna após anos afastado ou até mesmo o trabalho como tradutora, o que a leva a frequentar desde cerimônias enfadonhas às mais polêmicas conferências. A partir de um olhar amortecido, aos poucos vai revelando as rachaduras de uma existência esquecida, quase apagada. Em um momento de intimidade, quando o amante se prepara para lhe despir, ela o segura e, quase sussurrando, súplica: “preciso que você vá com calma, acredito ter esquecido como se faz”.
Há muito o que carregar, é certo. Suas responsabilidades são tantas que até mesmo um pedido aparentemente simples (“você pode me passar o e-mail dele?”) é capaz de levá-la às lágrimas. É como se a todo instante grande parte de sua dedicação fosse voltada a manter as aparências, a oferecer ao mundo uma sensação de normalidade e segurança, ainda que, no seu âmago, tudo o que deseja e fechar os olhos e esquecer. Em um final de semana no campo com familiares, assim que percebe estar tudo no seu devido lugar, sorrateiramente se retira, buscando um minuto de paz e isolamento. A filha, não mais do que uma criança, sente sua falta, e a busca para mais uma rodada de jogos de tabuleiro. “Por favor, vou dormir só um pouquinho”, tenta argumentar, porém sem muita resistência. Na cena seguinte estará novamente entre os demais, fingindo uma felicidade que não mais possui. Talvez pelo exemplo paterno de uma finitude complicada. Ou pela viuvez, que é mencionada somente de forma rápida e sem maiores desdobramentos. Mais provável, por tudo isso, e mais um pouco.
Uma rachadura se faz em sua armadura frente ao mundo com a aparição de Clément (Melvil Poupaud, dominando um charme que lhe é intrínseco, ao mesmo tempo em que equilibra uma fragilidade explorada a favor de um personagem inconstante, mas do qual é difícil antipatizar). Conhecido de longa data, os dois se frequentam há anos, talvez décadas, mantendo-se ambos na zona da amizade. Por trabalho, está constantemente viajando, e dos drama por ela vividos ele pouco sabe. Mesmo há tanto afastados, quando se sentam um diante do outro é como se retomassem da noite anterior, tamanha é a conexão. Quando a deixa na porta de casa, a despedida é rápida, mas ambos sentem que algo ficou faltando. Não irá demorar para marcarem uma nova visita. Daí, para um beijo, um abraço mais demorado, uma noite compartilhada, será questão de tempo. Mas ele é casado, por mais que afirme ser infeliz nessa união e pronto para uma inevitável separação. Entre idas e vindas, ele estremece estruturas que ela tinha como sólidas. Sandra sofre, por si, por ele, pelos dois, pelo que podem perder, por tudo que sonharam.
As famílias felizes estão por todos os lados, ainda que se mostrem cada vez mais inalcançáveis à protagonista. A mãe se reencontrou com um novo parceiro, o pai, por mais alheio que esteja a cada instante, segue clamando pela companheira que, dentro de suas próprias limitações, oferece a ele o que tem de melhor. Até a irmã tem consigo o parceiro ideal para fingir a visita do Papai Noel, sem embaraço ou constrangimentos. Sandra, frente a tudo o que se desenha ao seu redor, não pede muito, mas também não se mostra disposta a se contentar com pouco. É uma mulher que sofre e luta, chora e se recompõe, é forte quando necessário, mas frágil quando lhe permitem. Uma Bela Manhã é mais do que uma constatação, é também um pedido. Afinal, o que mais se pode querer do que uma bela manhã? Um sopro de normalidade no meio de tanto caos. Um momento de parar, de respiro e normalidade, sem tragédias ou celebrações, apenas o tangível e esperado. Nada mais do que o justo, ainda que tão precioso. Será seu valor medido apenas pelo montante de sofrimento até conquistá-lo? É a dúvida que cada um deverá carregar consigo, quer queira ou não.
Filme visto durante a 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
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Gostei muito ! Aliás filmes franceses são mais reais