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Sinopse

Céline e Ramón estavam dentro do Bataclan, casa de shows parisiense que foi alvo de um atentado terrorista em 2015. Eles sobrevivem à tragédia, mas ficam marcados para sempre: enquanto Ramón tem crises de pânico e ansiedade, sendo incapaz de voltar ao trabalho; Céline se nega a conversar sobre o assunto, e esconde dos amigos o fato de ter vivenciado o massacre.

Crítica

É fácil imaginar One Year, One Night (2021) sendo projetado em escolas, em memoriais e nas redes de televisão, no intuito de exemplificar os impactos profundos dos ataques terroristas nas vidas dos sobreviventes. Os personagens principais são dois jovens afetados pela tragédia: Céline (Noémie Merlant) e Ramón (Nahuel Pérez Biscayart) estão dentro do Bataclan, assistindo a um show quando ouvem disparos e percebem a presença de um atirador no local. Passada a noite aterrorizante, manifestam comportamentos opostos, e exemplares dos múltiplos efeitos de um evento do gênero: ele precisa mencionar o tema o tempo todo, enquanto sofre crises de ansiedade que o paralisam em casa. Já a namorada evita tocar no assunto, e esconde sua presença na noite do massacre aos pais e colegas de trabalho. Todas as cenas, sem exceção, representam efeitos do trauma: eles choram, gritam, brigam, reclamam das mensagens inspiradoras enviadas nas redes sociais. No início, um letreiro atesta que o roteiro foi escrito a partir de testemunhos reais de pessoas que escaparam ao atentado. O esforço é perceptível: não restam dúvidas de que o diretor Isaki Lacuesta tomou o tempo de recolher estas impressões e transformá-las num longo manual de efeitos colaterais. O projeto transborda de boa vontade e de piedade por estas pessoas.

No entanto, estes podem ser considerados os principais problemas do projeto. Céline e Ramón lutam para se emancipar da condição de vítimas, porém o filme está obcecado em enxergar no casal única e exclusivamente a imagem de sobreviventes. Constrói-se uma forma de cinema útil, educativa, didática, no qual cada cena serve ao propósito de demonstrar o desgaste emocional de ambos. Eles dormem mal, comem mal, sentem-se desconfortáveis quando saem de casa, mas também quando ficam no sofá o dia inteiro. Passam a fazer compras online, e se assustam com uma caixa de frutas caindo no chão (o barulho remete aos tiros). O olhar jamais ultrapassa o estágio da constatação: eles sofreram um trauma profundo, e serão sempre marcados por isso. Ponto final. Esta conclusão óbvia constitui o ponto de partida e também de chegada do drama, espécie de lamentação eterna do ocorrido. Os protagonistas chegam a discutir brevemente as implicações políticas da noite de 13 de novembro de 2015, porém a cena se interrompe sem deixar traços, e o diretor se priva de efetuar uma investigação semelhante por conta própria. Sua perspectiva se atém à análise superficial da tragédia (o terrorismo é ruim e provoca danos), em chave moral, ao invés de historiográfica, social ou mesmo política. A tentativa de introduzir uma fala do presidente da república ao debate (Céline assiste ao pronunciamento de François Hollande no quarto de hotel, após uma noite de bebedeira) soa cômica, de tão deslocada. Lacuesta não sabe como introduzir um olhar crítico ao ocorrido, e por isso, nunca extrai qualquer conclusão relevante deste episódio.

Em paralelo, existe uma responsabilidade ética fundamental ao se reconstruir um instante de tamanha dor à sociedade contemporânea. A ficção não recria um massacre fictício, dentro de uma casa noturna qualquer: ela insiste na relação direta com o Bataclan. A conexão explícita com o real exigiria cuidado na abordagem dos ataques em imagens. Ora, o cineasta emprega as ferramentas mais sensacionalistas possíveis para ampliar o impacto das mortes. Ele aposta num festival de planos próximos, com a câmera na mão chacoalhando para todos os lados, ao som de fartos gritos desesperados. As imagens são borradas, repetitivas, tentando imergir o espectador na impressão de estar em meio ao tiroteio, ao invés de oferecer o distanciamento propício à reflexão. Os tiques de linguagem beiram o obsceno, ou talvez o paródico: quando Ramón é atingido (em câmera lenta, aos berros), um coral de tom religioso invade a banda sonora. Para que a dor dure ainda mais, a sequência será distribuída pela montagem ao longo de toda a narrativa, na forma de flashbacks. Haveria inúmeras maneiras metafóricas de representar os fatos ocorridos, e suas consequências, ao invés de mostrá-los, reconstitui-los em detalhes. Venha ver, de perto, como tudo ocorreu! Olhe os corpos, o sangue, os gritos de "Allahu Akbar" pelos cantos! Venham, senhoras e senhores, experimentar a matança como se estivessem lá! Lacuesta fetichiza a dor alheia ao converter os protagonistas em mártires e instaurar um aspecto generalizado de paranoia. 

Apesar de munido de um discurso progressista, aproxima-se perigosamente do fomento ao medo tão comumente empregado nos discursos de extrema-direita na intenção de segregar minorias e diferenças. Os talentosos intérpretes se veem presos a tipos sociais, a exemplos de conduta: Merlant e Biscayart são conduzidos a chorar, fingir frieza excessiva ou incômodo diante de novas casas noturnas, cena após cena. Ambos encaram com seriedade o estilo novelesco da direção, e ameaçam conquistar alguma forma de respiro quando alguma cena aparenta se descolar do tema da tragédia — caso do passeio na praia. Mero engano: a sequência se encerra com a dupla em conflito novamente, em virtude das sequelas daquela noite. Rumo à conclusão, o roteiro esquece o rapaz por completo, dedicando-se apenas ao luto da garota cujas dores eram recalcadas. Lakuesta ainda permite que a conclusão seja representada por mãos levantadas ao alto, formando um coraçãozinho otimista, e pela imagem da sobrevivente saindo do Bataclan, em câmera lenta, com os cabelos ao vento, sob a luz das lanternas policiais. O resultado lembra o ensaio de atrizes e modelos diante de desastres naturais, ou uma campanha de conscientização organizada por redes bilionárias de televisão. A exemplo do famoso “Diga não à facção” proposto por um presidenciável, o espectador se depara com uma mensagem genérica do tipo “Diga não ao terrorismo” no fim desta exposição lamentável das dores alheias para fim de entretenimento sensacionalista.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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