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Sinopse

A crise provocada pelo desemprego do patriarca obriga uma família a se mudar ao interior de São Paulo. Em meio a um clima tenso, sinalizado por brigas constantes, a avó adoece e eles seguem enfrentando dificuldades financeiras. Certo dia, a mãe é abduzida, mas a vida segue, como se nada de estranho acontecesse.

Crítica

Na cena inicial, o diretor Bruno Risas narra a trajetória da própria família. Dotado de uma fala apressada e uma dicção particular, dificilmente seria candidato a narrador em outro projeto que não girasse em torno de sua experiência pessoal. Encontramo-nos diante do valor da autoexposição enquanto verdade: o cineasta coloca o pai, a mãe, a irmã e a avó em cena, controlando tenuamente as ações de cada um dentro da casa real da família. Por um lado, o artista deseja manter a aparência de real oriunda do dispositivo documental, por outro lado, busca o controle e a possibilidade de criação de uma narrativa roteirizada. Existe uma vontade de (oni)potência em projetos como estes, tão ambiciosos quanto despojados em sua aparência – afinal, a câmera contenta-se com cenas domésticas e conflitos de fácil identificação.

O aspecto social do projeto se revela particularmente interessante: Risas sabe aproveitar a óbvia intimidade com os personagens filmados para extrair cenas verossímeis discussões sobre contas a pagar ou sobre a busca por emprego. Através das mudanças de bairros por São Paulo e da exploração do espaço da casa, o diretor efetua um retrato frontal, tão afetuoso quanto desprovido de idealização, de certa classe média que se vê em processo de desestruturação em virtude dos recentes rumos do governo. A preocupação com este retrato se percebe na construção estética discreta, porém refinada. Existe uma bela luz entrando pela janela para iluminar a mãe deitada na cama, uma atenção particular ao contraluz quando o pai retorna para casa tarde da noite, enquanto a câmera o acompanha pela calçada. O conteúdo não se coloca acima da forma, ou seja, o afeto não se impõe como justificativa ou compensação para uma eventual construção “amadora” no pior sentido do termo.

O filme se diverte sobretudo com brincadeiras metalinguísticas, oferecendo ao espectador um jogo de adivinhação entre o espontâneo e o construído. Enquanto a mãe se senta no sofá, passa a narrar o roteiro desta própria cena em voz alta: “Ela se senta no sofá, fuma calmamente”. O lento aproximar de uma janela se revela um gesto ensaiado, e mesmo as tarefas domésticas são ensaiadas pela diretora de fotografia. Cada gesto banal se revela roteirizado, ressignificando-se aos olhos do espectador. O jogo pode não fornecer nenhuma fricção particularmente complexa, brincando com a estética do híbrido tantas vezes explorada pelo jovem cinema nacional, porém ainda solicita a presença de um espectador ativo. Questiona-se a natureza da imagem enquanto forma de representação: se poderia facilmente obter uma cena “escondida” da mãe filmando, porque ensaiá-la e explicitar, em seguida, o ensaio? Em que medida a reconstituição de ações ficcionaliza a narrativa documental?

Como sugere o título, um componente de ficção científica se introduz de modo tênue ao longo da trama. Para além do estranhamento metalinguístico, Risas oferece a possibilidade de que a rotina familiar seja interrompida pela chegada de um elemento extraterrestre para se comunicar com a mãe. O olhar atento ao céu e a longa observação de uma mão despertam a atmosfera antinaturalista necessária à entrada no cinema de gênero. É uma pena que ainda se recorra aos clichês dos efeitos sonoros “de gênero” para sugerir a presença estrangeira. Além disso, quando a ficção científica enfim se combina com a estética documental, o resultado soa anticlimático, apenas uma provocação suplementar com a não-representação, ou ainda a sugestão do fantástico para um desfecho banal. Por mais interessante que seja destituir a presença extraterrestre de seu caráter espetacular, esta escolha tampouco desenvolve a trama ou se relaciona com ela de modo frutífero. As “coisas estranhas no céu” se tornam apenas mais uma vontade de potência do diretor.

Muita coisa acontece, mas nada muda”, reclama-se num diálogo, aparentemente comentando a estrutura do filme como um todo. Diverte-se com a exposição simultânea da ficção e dos bastidores, do filme e do filme-sobre-o-filme. A narrativa poderia ir muito além no abismo autorreferente, em especial no que diz respeito à autoexposição: o diretor explora com frequência a imagem dos familiares enquanto poupa a sua própria imagem, subaproveitada. O “outro lado”, ou seja, o mundo alienígena, não teria nada especial, seria “igual a aqui”. Ontem Havia Coisas Estranhas do Céu revela-se uma experiência blasé, um cinema jovem encantado com a ausência de pathos: retrata-se brigas familiares com ar inconsequente (afinal, elas estão sendo ensaiadas e/ou estimuladas), brinca-se com a representatividade do cinema sem realmente levá-la às últimas consequências, retrata-se possíveis alienígenas que não soam interessantes o suficiente para interromper um almoço em família. Uma premissa ambiciosa desemboca, afinal, no prazer da despretensão.

Filme visto na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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