Crítica
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Crítica
É curioso como o imaginário ocidental a respeito de Cuba tem sido forjado por terceiros. Conhece-se pouco sobre a ilha, e sobre os ideais distintos de socialismo e comunismo, a partir dos próprios cubanos. A história do século XX ensinou as nações capitalistas a temerem os movimentos revolucionários, citando desde argumentos racionais válidos (o controle da liberdade de ir e vir, que efetivamente ocorreu durante o regime de Fidel Castro) até elementos de paranoia, típicos da política do medo (os rumores de que comunistas bebiam o sangue de crianças, vendiam os jovens, enviavam meninos e meninas para o trabalho forçado na União Soviética). As fake news existiam muito da Internet, muito antes de serem instrumentalizadas enquanto tais. A CIA, por exemplo, disseminava rumores apocalípticos a respeito de Castro por meio de programas de rádio assumidamente falsos, enquanto os Estados Unidos financiavam golpes militares nos países sul-americanos para “prevenir” uma contaminação comunista no continente – Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e afins que o digam. A fobia de um comunismo vilânico justificava golpes institucionais no passado, e ainda produz a eleição de presidentes de extrema-direita em países como o Brasil, onde se brada contra a ameaça vermelha apesar de não haver uma única candidatura comunista nas eleições, nem mesmo uma liderança comunista organizada.
Outra consequência direta do medo do desconhecido consiste na operação que dá origem ao documentário dirigido por Kenya Zanatta e Maurício Dias. Com apoio dos norte-americanos e de lideranças religiosas, cerca de 15 mil crianças foram afastadas de suas famílias e levadas para Miami, enquanto se esperava que os Estados Unidos varressem os ideais coletivistas do país vizinho. Os próprios pais, pertencentes à alta burguesia nacional, enviavam as crianças pequenas aos Estados Unidos. Muitas delas, no entanto, jamais puderam voltar, sendo criadas por novas famílias e perdendo o contato com Cuba. O documentário aborda este tabu histórico com a sensibilidade e o senso de responsabilidade de quem mergulha num evento traumático. Os cineastas fogem a duas armadilhas comuns ao resgate histórico acerca de injustiças sociais: por um lado, evitam a tentação de denunciar, gritando verdades a um público que se supõe ignorante, e por outro lado, fogem ao olhar piedoso e martirizante das crianças da época, hoje idosos morando nos Estados Unidos. O filme permite que a história seja contada pelas crianças cubanas da época e por estudiosos sobre o país – tanto cubanos quanto norte-americanos -, para fornecer um olhar multifacetado a respeito da turbulência política dos anos 1950 e 1960.
Operação Pedro Pan (2020) possui notáveis méritos discursivos e estéticos. No que diz respeito ao posicionamento ético dos cineastas, eles orquestram as histórias particulares de modo a elaborarem uma compreensão mais ampla sobre as histórias nacionais. A memória afetiva constitui uma porta de entrada aos fatos. Uma mulher narra a lembrança de, quando criança, ser colocada dentro de um avião e ver os pais acenando lá fora, com lencinhos brancos, sem saber quando voltariam a se encontrar. Outro senhor compartilha a experiência de escutar o choro das crianças durante a noite, dormindo em casas estranhas de moradores desconhecidos, com saudades do país e da família. Um terceiro senhor lembra que foi separado do irmão, enviado a outra parte dos Estados Unidos. Os dois não tornaram a se rever. O filme despe a História de seu caráter formal e frio, rompendo com o descritivismo para penetrar no material humano. Por mais que alguns relatos despertem lágrimas, a maioria ultrapassa a emoção inicial e atinge a compreensão de que o gesto impensado de milhares de famílias mudou para sempre a vida destas pessoas, que tiveram sua identidade nacional e parte de sua história violada pelo intervencionismo ianque e a fobia castrista. O resgate de episódios de abuso sexual nos Estados Unidos coroa uma experiência vivida, por si só, enquanto uma forma de abuso.
Os diretores efetuam notável trabalho de pesquisa, transparecendo o equilíbrio cuidadoso entre material de arquivo, entrevistas e representação contemporânea de Cuba e de Miami. A operação Pedro Pan constitui um mero ponto de partida para destrinchar as relações políticas da época, as pressões sobre Castro, Eisenhower e Kennedy, a invasão da Baía dos Porcos e a crise dos mísseis, o bloqueio econômico da ilha e a consequente aproximação econômica entre cubanos e soviéticos. De maneira fluida, dando tempo para respiros e para a contemplação, entrelaça-se o individual e o coletivo, o pessoal e o nacional. O documentário transparece a abordagem madura dos criadores, a extensa busca por fotos e vídeos da época, o encontro com dezenas de pessoas cujos depoimentos tornam a experiência do filme mais rica. Cada testemunho é orquestrado por meio de um trabalho competente de som, fotografia e, sobretudo, montagem. Sem necessitar de blocos separados, letreiros explicativos ou outras formas artificiais de organização, a montagem permite que os temas conduzam uns aos outros, originando as reflexões posteriores sem sobressaltos. A política e a História se tornam próximas, amigáveis, tão frontais quanto distanciadas, fruto da boa seleção de personagens e da condução adequada das conversas.
“Podemos parar?”, suplica uma das “pedro pans”, enquanto narra sua história de abuso sexual num lar estadunidense. O filme então para, corta, e retorna quando a personagem consegue retomar o testemunho. Há respeito e carinho por essas pessoas, além da compreensão de que nenhuma revelação bombástica seria mais importante do que a integridade dos protagonistas. Como tiveram sua história violada no passado, que sejam preservados desta vez. Operação Pedro Pan observa a História de igual para igual, à altura dos olhos. As falhas mais comumente percebidas em documentários destinados à televisão (o didatismo, o tom de reportagem, as deficiências de luz e som, a abordagem impessoal) estão ausentes deste filme que mereceria ganhar as telas do cinema. Ainda que Zanatta e Dias apostem num formato convencional, eles extraem o melhor da fórmula típica do documentário histórico, enquanto acenam discretamente às conexões entre o episódio e o tempo presente. O rosto dessas pessoas idosas e o contraste da montagem entre Havana dos anos 1960 e Havana dos dias de hoje fornecem elementos para uma reflexão posterior que os espectadores precisarão fazer por conta própria. Felizmente, este não é um filme de respostas, e sim de (boas) perguntas. Em tempos de antiintelectualismo e revisionismo histórico, esta constitui uma das abordagens mais frutíferas que o cinema poderia adotar.
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