Crítica
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Sinopse
Entediado, Orfeu se apaixona pela Morte que, por sua vez, arquiteta o fim de Eurídice, a esposa desprezada. As duas acabam ficando presas no inferno e o poeta decide por lá incursionar a fim de refletir sobre seu amor.
Crítica
Nesta versão do mito grego de Orfeu, o autor Jean Cocteau se identifica com o protagonista, pois igualmente poeta. A lógica associativa é revelada pela maneira como o realizador francês valoriza as respostas do protagonista à beleza das sentenças que chegam a aliená-lo do mundo e dos perigos avizinhados de sua amada Eurídice (Marie Déa). O ator Jean Marais encarna esse homem cuja inquietude decorre das amarras da fama. Diante da morte de um jovem colega de profissão, apresentado como alguém patrocinado por uma princesa de andar e olhar misteriosos, ele se vê tragado pelo extraordinário que gradativamente se desvela diante dos seus (e dos nossos) olhos. A quebra da lógica, do bom senso, prenuncia que há bem mais coisas entre os imaginários céu e inferno do que supõe a nossa vã e limitada filosofia. Privado de respostas, praticamente sequestrado pela mulher que acabara de dar de ombros diante do passamento de alguém – por ela provocado, saberemos em seguida –, ele se vê mergulhado numa dimensão antes inacessível, agora aproximada pela potência de seres mitológicos e seus asseclas capazes de transitar fluentemente entre concreto e transcendente.
Jean Cocteau lança mão de artifícios engenhosos para mostrar a faculdade espetacular do que está além da nossa compreensão cartesiana da vida, utilizando truques e demais artifícios para romper com as limitações do realismo. María Casares compõe a personagem enigmática, rapidamente revelada não como uma mecenas sem coração, ou mesmo assassina impiedosa afeita a aniquilar artistas, mas enquanto a Morte personificada. Essa presença é muito marcante, resultado obtido pela caracterização que a deixa com ar etéreo/perigoso, além da aptidão da fotografia de Nicolas Hayer que ressalta sua escuridão em meio à luz ou vice-versa. Essa dinâmica às vezes é propositalmente escancarada (e expressiva), noutras acontece de modo bastante sutil. Diante dos abismos que a Morte suscita, Orfeu é refletido como um sujeito irremediavelmente vitimado por um destino trágico, arrolado por suas obsessões ao ponto de negligenciar a esposa grávida e se colocar incessantemente dentro do carro de luxo cujo rádio transmite as frases inspiradoras. Nesse ponto, a fantasia quanto à existência do mundo paralelo se impõe, inclusive, como possibilidade de exacerbar o poético. Amores, compulsões, impulsos e a atração exercida pela finitude são processados dentro duma perspectiva em que os gestos rimam.
Homens e entidades adentram no antes imaginado, que passa a ganhar ares de existente, através de espelhos, quando autorizados ou cientes dos subterfúgios. Mergulham no desconhecido ao bagunçar o reflexo. Em Orfeu, o lirismo não está somente nas palavras, nas manifestações diretas, mas principalmente nas atitudes, nos movimentos, tais como esse de subverter o normal a partir da obliteração da própria imagem. Também entra nessa perspectiva a concepção da dimensão alternativa, lugar decadente, repleto de escombros, nos quais as inquisições acontecem em aposentos depauperados, mas ministradas por homens trajados alinhadamente. A direção de arte é essencial ao êxito visual de Orfeu. A arquitetura da casa do protagonista substancia essa capacidade insuspeita de aludir tenuemente ao sobrenatural por associação poética. Isso, haja vista o aposento dos amantes no andar de cima (acessado por um alçapão), as entradas e saídas do andar superior por meio de uma escada estrategicamente posicionada do lado de fora e a propensão pelo entrecruzamento de espelhos e suas capacidades multiplicadoras. A imagem é outro componente essencial à construção íntima do filme.
Em determinado instante, quando Orfeu é sentenciado a nunca mais poder olhar Eurídice – sob a pena de perde-la eternamente –, ele se desespera ao observar a fotografia dela numa revista. O fiel escudeiro Heurtebise (François Périer) o alerta de que aquilo não se trata de sua mulher, mas da mera representação dela. Nesse diálogo aparentemente banal, Jean Cocteau torna acessível (por direta evidência) a investigação que faz ao longo de todo filme sobre a diferença entre o real e aquilo que dele decorre, seja como reconfiguração romântica ou reinterpretação livre. Mas, contradiz propositalmente a distinção ao sentenciar a esposa pelo vislumbre do reflexo no espelho, assim confirmando o objeto como essencial à sua verdade. Ao mesmo tempo, coloca em xeque as noções de existente e inexistente, não negando um deles, mas os fundindo e confundindo. O sujeito capaz de encantar com sua arte é enredado pelos sortilégios da eminência apaixonada. Ele, que sempre observou a Morte como companheira de inspiração, enamora-se de seu retrato feminino (que não a define inteiramente). São várias camadas se interpondo nessa obra-prima que apresenta uma riqueza enorme de significantes e significados, bem como a engenhosidade de evocar o metafísico pela mecanicidade do cinema, valendo-se de trucagens simples que geram as inefáveis quebras de lógicas físico-espaço-temporais.
Filme visto online no 11º MyFrenchFilmFestival, em fevereiro de 2021.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Marcelo Müller | 10 |
Chico Fireman | 8 |
MÉDIA | 9 |
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