float(4) float(1) float(4)

Crítica


7

Leitores


1 voto 8

Onde Assistir

Sinopse

Uma carta reveladora à escritora Virginia Woolf para dizer que seu personagem Orlando se tornou real.

Crítica

Filósofo e escritor transgênero, Paul B. Preciado estreia no comando de longas-metragens com Orlando, Minha Biografia Política, um diálogo transdisciplinar inteligente, poético e afetuoso com o livro Orlando: Uma Biografia, de Virginia Woolf. Antes de qualquer coisa, há a demarcação do quão pessoal é essa iniciativa. Preciado narra os passos iniciais por meio de uma carta endereçada à escritora inglesa que cometeu suicídio em 28 de março de 1941, nela reivindicando conexão com um personagem emblemático. “Eu sou Orlando”, diz o realizador, afirmando algo que visa tensionar realidade e ficção, assim antecipando o que está por vir. Dali em diante, homens e mulheres transexuais, além de pessoas não binárias, transitam pela telona anunciando que interpretarão o/a Orlando de Virginia Woolf, logo se conectando a esse realizador que diz ser o personagem. Em vez de simplesmente retratar os depoimentos dos colaboradores, colaboradoras e colaboradorxs, Preciado os coloca em cena como intérpretes da figura saída das páginas inspiradas em Vita Sackville-West, a quem Virginia Woolf dedica o livro. O protagonista dele é Orlando, aristocrata inglês do século 16 que, depois de uma viagem à Constantinopla, acorda num corpo feminino, logo questionando gênero, tempo e identidade. Aliás, o primeiro ponto de associação entre Preciado e Woolf é a estrutura biográfica das tramas.

Em seu aclamado romance, a escritora fala de uma pessoa real por meio de um dispositivo ficcional, assim imaginando a partir da realidade. Portanto, ela aborda o real com a ajuda da representação, desse instrumento que liberta pessoas e situações da dureza dos fatos, sem com isso amenizar dramas e angústias – como ao mostrar Orlando dormindo por semanas a fio durante a transição, belíssima simbologia poética. Preciado faz algo parecido optando por contar a própria história, bem como a de seus personagens, por intermédio das conexões com Orlando, assim diluindo causos potencialmente dolorosos sobre falta de aceitação, dificuldade diante do discurso psiquiátrico normativo, entre outras coisas, numa teatralização que repete frases do romance e faz apropriações dele visando reconhecimento. Desse modo, é estimulante quando alguém revela peculiaridades do processo de transição, pretensamente dando um depoimento tradicional a respeito do assunto, mas deixando aos poucos o relato ser “contaminado” por citações literárias que geram identificações emocionais e cinematográficas. Uma vez que todos, todas e todes são Orlando, há uma (auto)autorização generalizada para a utilização da máscara woolfiana visando melhor expressar intimidades e angústias. Os personagens incorporam a persona de Orlando como catalisadora das suas histórias, veículo por meio do qual se expressam.

Orlando, Minha Biografia Política é um documentário incomum sobre transexualidade. E essa raridade é um dos seus pontos positivos. Primeiro, porque as inusitadas encenações com os personagens se vestindo de Orlando e/ou de acordo com as convenções do século 16 quebram a sisudez dos relatos, os catapultando para além da convenção das "cabeças falantes”. Segundo, pois, ao escancarar a natureza representativa dos testemunhos, o cineasta Preciado os aproxima da performance, porém sem subtrair veracidade como raiz do resultado. O realizador não está preocupado em desorientar espectadores entre o inventado e o vivido, tampouco em distribuir pistas para estimular um jogo de diferenciação entre as camadas narrativas. Uma vez que Preciado reivindica ser Orlando e que os diversos depoentes anunciam interpretar essa figura emblemática da escrita de Virginia Woolf, há um convite implícito para a plateia se jogar nos nevoeiros das fronteiras. É preciso se perder nos limiares indeterminados ao ponto de os fatos e as invenções não conflitarem. É preciso rechaçar essa aparente incompatibilidade. Ao propor uma não binariedade narrativa pela demolição dos antagonismos, o realizador incute na forma do filme algo inerente ao discurso contrário à leitura normativa de um mundo repleto de seres múltiplos. A proposta é não restringir as pessoas e o cinema a duas possibilidades que se anulem.

A única coisa que depõe contra a experiência instigante e intrigante de Orlando, Minha Biografia Política é a significativa repetição de determinados depoimentos associados aos trechos de Orlando: Uma Biografia. Sem condescendências paternalistas, mas com um pouco de boa vontade e discernimento, podemos atribuir isso à inexperiência de Paul B. Preciado, alguém que está debutando na realização de filmes. Agora, invertendo a lógica, ou seja, observando as qualidades do estreante, elas vão além da sensibilidade para escolher personagens indicativos da causa transexual e/ou não binária, tópico cada vez mais amplamente discutido na atualidade. Essa proposição de uma narrativa na qual é possível colocar em xeque as fronteiras entre ficção e realidade, sem prejudicar a atitude performática, aponta a uma preocupação cinematográfica de natureza linguística. Portanto, para Preciado não basta evocar Orlando por meio de figuras que enfrentaram (e enfrentam) em seus cotidianos situações equivalentes às relatadas por Virginia Woolf no seu livro. É preciso ser formalmente contrário ao normativo. O realizador utiliza um arcabouço transdisciplinar, mesclando cinema, teatro, literatura a fim de empoderar seus convidados durante uma construção orgânica e coletiva. Enquanto homenageia a obra de referência que ajuda a traduzi-lo para esse mundo viciado em normatividade, teimoso em incompreendê-lo, Preciado confere aos personagens instrumentos poéticos que os enaltecem.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *