Crítica
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Crítica
Pensemos nas pessoas como se elas fossem castelos. Geralmente não conseguimos enxergar as fundações até boa parte da estrutura externa ser comprometida. Pádraic Súilleabháin (Colin Farrell) provavelmente nunca ponderou a respeito do que o mantinha relativamente feliz, em meio à vivência entediante na fictícia ilha irlandesa de Inisherin. Será que alguma vez esse sujeito considerou sobre a real importância da amizade de Colm (Brendan Gleeson) para ele suportar a rotina nesse espaço estagnado? Além disso, o quão Pádraic torce em segredo para que as novidades do mundo, incluindo as guerras, não alterem seu cotidiano semelhante a um rio de correntezas previsíveis? Em Os Banshees de Inisherin uma crise repentina sugere essas reflexões que, por sua vez, descambam em conflitos. Colm diz que não deseja se relacionar com Pádraic. Este, por sua vez, experimenta estágios que começam na perplexidade, passam pela obsessão e chegam ao ódio decorrente da frustração. Aparentemente, o cineasta Martin McDonagh (que também assina o roteiro) fará algo no estilo Bartleby, personagem do Bartleby: O Escrivão, livro de Herman Melville, um burocrata que se recusa a fazer certas tarefas e com isso deixa um rastro enorme de desconforto (até por não justificar a decisão). No entanto, McDonagh recua diante da possibilidade de manter a dúvida, logo colocando na boca dos personagens porquês e senões.
Martin McDonagh desenha uma atmosfera lúgubre para fazer de Os Banshees de Inisherin uma balada triste sobre as relações chacoalhadas pelo medo da morte (ou da mudança). Os personagens transitam por um espaço rural repleto de animais, sem benesses da modernidade. As roupas são tão rústicas quanto as casas e a harmonia resulta de uma resignação coletiva. Tudo funciona diariamente do mesmo jeito. A menor alteração de rota causa alvoroço. É como se essa sociedade intuísse que sua sobrevivência depende da manutenção da inércia. O dono do boteco fica perplexo com a chegada de Pádraic sem Colm. Logo depois, outro vizinho demonstra o estranhamento (utilizando exatamente as mesmas palavras para externar seu espanto). Ao longe, a Guerra Civil da Irlanda anuncia um mundo diferente, a modernidade em guerra, a realidade em que os conflitos são abrangentes. Porém, guardadas as devidas proporções, seriam eles tão mais violentos do que um pai agredindo um filho? O filme não se abre à compreensão profunda do ambiente, tratando-o como pano de fundo dos eventos gerados pelo rompimento de uma amizade. É uma pena que as engrenagens tradicionais desse vilarejo não ganhem o devido destaque (e estudo) como responsáveis pela angústia insinuada pelos ventos dos novos e sinistros tempos. Ao horror do novo, o realizador prefere observar a angústia do desprevenido.
Os Banshees de Inisherin cria um ambiente propício para discutir diversos tipos de violência (literais e figuradas), bem como as particularidades da comunidade tradicionalmente resignada e avessa ao progresso. No entanto, Martin McDonagh não investe num diagnóstico coletivo, a isso preferindo estreitar o foco nas tentativas desesperadas de Pádraic para convencer Colm sobre a amizade enquanto pilar de algo raro. A fotografia assinada por Ben Davis enfatiza os tons melancólicos da história sobre um rompimento supostamente banal que poderia anunciar uma ruína simbólica ainda maior. Isso, especialmente por conta dos tons esmaecidos e da inserção da natureza como uma onipresença ambígua na composição das imagens. O acúmulo de ícones religiosos e a idosa semelhante a uma bruxa agourenta acentuam o aspecto mitológico anunciado no título – as banshees seriam entidades da categoria das fadas que prenunciam a morte. Essa construção atmosférica é propícia para aqueles filmes que relativizam certos e errados ao deixar lacunas para serem preenchidas individualmente por cada espectador. Há um clima obscuro pesando sobre homens e mulheres, algo tão ou mais instigante do que as reações a ações inusitadas. Porém, o cineasta dissolve (e enfraquece) o clima misterioso ao utilizar vários diálogos expositivos, vide o instante em que o homem revela as motivações ao amigo incrédulo.
Colm anuncia que a mudança abrupta de atitude tem a ver com a percepção do vazio de Pádraic. O homem mais velho quer se dedicar à música, a algo que possa eterniza-lo, enquanto o mais jovem (e resignado) apela à necessidade de ser gentil no presente. Mas, é apenas nesse diálogo que a diferença brutal vem à tona. Nele, Pádraic relativiza os anseios de eternidade do ex-amigo ao afirmar que o afeto pode perpetuar as pessoas na memória alheia. Todavia, até que ponto essa defesa apaixonada da gentileza não é apenas o desespero de um homem que vê ruindo as fundações do próprio castelo? Não seria ele o egoísta agindo de acordo com aquilo que o deixa confortável no curso conformado de uma vida sem grandes emoções? Martin McDonagh situa essa balada irlandesa numa realidade histórica conturbada, deixa várias portas semiabertas, sinaliza muitos caminhos a serem percorridos e oscila meio burocraticamente entre a moldura e o retrato nela contido. O que breca a grandeza de Os Banshees de Inisherin é a indecisão entre mergulhar nas incertezas dos mistérios e elucidar as respectivas crises dos protagonistas. As abstrações seriam valorizadas sem tantas respostas, mas vale destacar a função simbólica da burrinha análoga ao protagonista A Grande Testemunha (1966), obra-prima de Robert Bresson na qual o bicho também é a pureza agredida pela crueldade. Além disso, Colin Farrell, Brendan Gleeson e Barry Keoghan estão excepcionais como sujeitos afetados distintamente pelo tempo.
Filme visto no Festival do Rio em outubro de 2022
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Entre a guerra e a (aparente) paz que Inisherin representa, uma reflexão se faz a partir da intriga causada pela desconsideração. É como se o ponto azul constante da paisagem (tela) de Juan Miró fosse insignificante diante da imensidão branca e pacata de Inisherin. O silêncio do nada acontece. Entre os muitos motes retratados no filme, está a desconsideração pela gentileza que ora está encarnada na imbecilidade, ora naquilo que não é tido como tal simplesmente por ser diferente, como uma mula. Ignora-se naquela trama o fato de que inteligência e loucura não ocupam o mesmo espaço. Talvez, aqueles que são desprezados pela sua imbecilidade inspiram uma inteligência social de mudança que outros, (auto)considerados/valorizados em seu capital político, cultural ou institucional não inspiram. São loucos por dizerem o que pensam munidos pelo álcool ou pela perversidade?! Seus históricos narram seus desfechos. Disso, nasce uma música que se talvez composta por mãos de cinco dedos jamais vingaria. Ali, a ignorância no sentido assentado conta a delicada escolha sobre si mesmo e o outro - ser feliz por si ou ser infeliz para garantir a felicidade do outro. Em Inisherin, a notícia é angular como em qualquer outra civilização e o poder é que(m) conta. A morte está no silêncio da verde paisagem, do exílio da ilha, das pessoas que não se cumprimentam, dos bombardeios que se fazem na outra margem, da amizade que se desfez sem (?) motivos, da escolha sem olhar pra trás. Bruxas ou fadas? O autor escolheu o inverno - uma velhinha enlutada. A vida só há naquilo que não há - seja nas falésias, na terra firme, no silêncio de uma guerra que ainda não lhe pertence, na escolha do outro. Dizer não é dizer sim e todos têm suas próprias razões. Assim é Os Banshees de Inisherin.