Crítica
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Sinopse
Crítica
Em Os Donos da Rua, o som do helicóptero é uma lembrança constante do clima de tensão que persevera no bairro de South Central, em Los Angeles, habitado essencialmente por moradores negros. Mais do que assinalar uma possível vigília da lei, justificada por conta da onda de violência que recorrentemente atravessa o cotidiano das cercanias, o som, não tão estridente, mas ainda assim bastante perturbador pela constância e a simbologia, representa a pressão do Estado sobre uma população que sobre baixas todos os dias. Furious (Laurence Fishburne) percebe esse cenário constituído de artifícios que visam esconder a verdade acerca de um plano velado de genocídio da população afroamericana. Para deflagrar tal conjuntura, alimentada silenciosamente por um sistema dissimulado, o cineasta John Singleton não recorre ao expediente de mostrar brancos brutalizando negros, ampliando a sensação de desalento ao forçar o choque entre “irmãos”, ou seja, com negros se encarregando da morte dos seus. Vide o policial que demonstra ojeriza da própria gente.
A convivência desde cedo com a ideia da morte, a naturalização desse contato precoce com a selvageria das ruas, gera um efeito entre o cômico e o desesperador na cena dos meninos se deslocando para ver o corpo alvejado que apresenta sinais de putrefação. A subsequente disputa por uma bola de futebol americano tem dupla finalidade. Por um lado, demonstra a banalização da finitude, eclipsada rapidamente por uma disputa com ares de batalha territorial. Por outro, desenha um incentivo sintomático à agressividade infantil. Os próprios gangsteres se encarregam de plantar nos pequenos uma tortuosa ideia de respeitabilidade pela força física e/ou a intimidação que uma arma de fogo possibilita. Passados sete anos desse momento, o protagonista, Tre (Cuba Gooding Jr.) transita por um caminho de retidão enquanto alguns de seus amigos de infância comemoram a saída da prisão sem sinais de colocar ponto final num círculo vicioso implacável que gera aflição e morte. O olhar aos desvalidos é pesaroso, como o lançado à mãe negligente em virtude do uso de drogas.
Ao largo de experiências aparentemente normais para jovens que ainda não sabem muito bem o que fazer da vida, Os Donos da Rua expõe a tese de que a mortandade negra somada ao altíssimo contingente de criminalidade entre afroamericanos é um indício claro dos mecanismos que visam tão e somente a aniquilação de um povo vilipendiado. Nas bordas de dilemas supostamente banais, como a tentativa de Tre de convencer a namorada católica a fazer sexo antes do casamento, há toda uma engenharia cinematográfica disposta a colocar em xeque a sociedade regida estritamente por brancos – como Ronald Reagan, presidente norte-americano em 1984, ano em que se passa o filme, mencionado num cartaz de campanha eleitoral cravejado de balas. Por mais que o protagonista tente se desvencilhar dessa sina vendida publicamente como efeito colateral de algo espontâneo, há sempre um dado de selvageria ameaçando-o de puxa-lo ao centro de situações periclitantes. Privado da inocência desde bem cedo, ele se vê diante de encruzilhadas quase inescapáveis.
John Singleton se cerca de cuidados para fazer de seu filme um retrato poderoso da América negligenciada, indo fundo na análise de determinados comportamentos. Exemplo disso, Dougghboy (Ice Cube) sendo confrontado por Shalika (Regina King) quanto ao costume de chamar as mulheres de “gostosas” ou “vadias”. O erudito Furious, além de ser quem verbaliza as intenções essenciais do longa-metragem, sendo uma espécie de porta-voz do realizador entre os personagens, quebra o estereótipo do pai negro ausente com sua diligência. Os Donos da Rua é uma obra-prima não apenas por expor incisivamente uma estrutura perniciosa, abraçando vívida e intensamente a vocação de cinema-denúncia, mas por fazê-lo sem entraves meramente panfletários, estofando as pessoas com anseios e dúvidas comuns, tornando universal as suas demandas, para tanto sem deixar de lado as idiossincrasias concernentes ao fato de serem negras num Estados Unidos racista, nesse país que prega subterraneamente os seus extermínios enquanto publicamente se diz plural e igualitário.
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Ótima análise
Cara my boa a crítica, esse pra mim continua sendo o melhor filme de todos.