Crítica
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Sinopse
Os Enforcados: Em um Rio de Janeiro tomado pelo crime, o casal Regina e Valério se vê envolvido em dívidas e traições herdadas da família de Valério. Uma noite, eles encontram o plano perfeito. Mas, ao executá-lo, são sugados por uma espiral de violência que parece não ter fim.
Crítica
O cineasta Fernando Coimbra se destacou no cenário brasileiro com o excelente O Lobo Atrás da Porta (2013), mergulho cru na sordidez de um Rio de Janeiro bestial, o tal purgatório da beleza e do caos cantado por Fernanda Abreu. E ele volta a contar uma história ambientada na Cidade Maravilhosa depois de mais de 10 anos, mas desta vez com personagens de um submundo feito de maracutaias e tramoias. Um dos protagonistas é Valério (Irandhir Santos), sócio do seu tio (Stepan Nercessian) num dos principais impérios da jogatina ilegal (bicho, máquinas de caça-níquel, etc.). Frustrando as expectativas de riqueza da sua esposa, Regina (Leandra Leal), a outra personagem principal, ele anuncia que está falido e pretende vender a sua parte dos negócios ao parente visando equilibrar a vida financeira e deixar de lado a contravenção. Mas, antes que Valério exponha essa vontade de mudar de rotina, ele e a esposa são vistos encenando uma relação sexual forçada – previamente combinada e, portanto, consensual. Cada qual com o seu tesão, mas essa forma pouco ortodoxa de chegar ao orgasmo (durante a representação de uma violência) deixa indícios de o quanto ambos se excitam com o perigo. Aliás, essa é a primeira das boas ideias pouco desenvolvidas em Os Enforcados. Regina e Valério poderiam ser estudados a partir dessa disposição erótica à brutalidade, mas isso acaba não acontecendo. E assim se perde.
Fernando Coimbra deixa passar uma boa oportunidade de elaborar os personagens de maneira complexa ao restringir a observação do sexo a algo somente excêntrico. Já as muitas referências à obra de William Shakespeare prometem alguma grandeza para além do grotesco. Valério é como Hamlet, o príncipe entristecido porque seu pai foi assassinado pelo tio (de quem é sócio). Esse homem é casado com a versão moderna e dondoca de Lady MacBeth, a esposa que, com sua capacidade de convencimento, induz o marido a cometer um assassinato a fim de ocupar o trono (neste caso, a posição mais alta entre os contraventores da gangue da jogatina). Some a esses arquétipos do universo shakespeareano algumas pitadas de tragédia grega, especialmente por conta da disposição que os personagens têm de atentar contra o próprio sangue – se isso significar vantagem e/ou êxito numa realidade perigosa. Carregando toda essa simbologia, Os Enforcados é um filme mais estilizado do que O Lobo Atrás da Porta. Enquanto no longa anterior fazia uma radiografia cáustica até chegar à conclusão de um mundo-cão asfixiante, aqui Coimbra parece mais disposto a enxergar a imundície com pretensão grandiosa, assim se distanciando da aspereza cotidiana tão impactante na produção que o tornou conhecido. Dessa vez há uma afetação que impede certas coisas de provocar impacto, mobilizar o espectador e o incomodar.
O principal entre os elementos mal resolvidos de Os Enforcados é a progressão do personagem de Irandhir Santos. Ele começa como homem farto da contravenção, submetido aos caprichos da esposa e levemente desconectado daquilo que é preciso para ser um chefão do jogo do bicho. Por isso mesmo, pensa em largar tudo e começar uma vida nova. É até plausível que Valério seja convencido do contrário pela esposa, ainda que Fernando Coimbra não enfatize tão bem esse movimento que poderia revelar um lado ainda mais maquiavélico de Regina. No entanto, Valério apresenta mudanças abruptas de comportamento, em quantidade e grau próximos do artificial. Ele rapidamente deixa de lado as hesitações em virtude da sugestão de matar o próprio tio a fim de galgar degraus na criminalidade. E aí se transforma repentinamente num homem frio e calculista que deixamos de reconhecer. Tudo culmina com a cena em que Valério prega uma peça em dois concorrentes, oferecendo-lhes o banquete absolutamente indigesto depois de os deixar trancafiados por um longo período somente à base de água. A sequência é muito boa, inclusive alude a alguns dos instantes mais chocantes e provocativos de O Lobo Atrás da Porta, mas o estrategista capaz de bolar um plano tão diabólico e cruel tem pouco do sujeito vacilante que até pouco tempo atrás estava criando alternativas e táticas para largar de vez a vida de criminoso.
O sangue, o sexo e a sordidez são amenizados em Os Enforcados por essa estilização que transforma a podridão em arma de perfuração superficial. Porém, o filme tem momentos fortes e alguns predicados. Irandhir Santos está muito bem na pele desse Hamlet da baixada fluminense, mas a curva dramática do personagem não permite ao ator voos maiores. Já Leandra Leal, a Lady MacBeth emergente que começa o filme preocupada com a reforma da mansão e termina com o semblante paralisado ensopado de sangue, tem um pouco mais de espaço para criar uma figura interessante que oscila da inaptidão à malícia, às vezes na mesma cena. Fernando Coimbra conta de maneira muito picotada essa história, se valendo de elipses (omissão de eventos em prol da fluidez narrativa) para acelerar a escalada da violência e das intrigas que sustentam o cenário da tragédia. Coimbra representa os contraventores com base em lugares-comuns, ou seja, de modo arquetípico. E ele remete diretamente a O Poderoso Chefão (1972) quando o Hamlet da Pavuna, tal e qual o Michael Corleone de Al Pacino em ascensão, decide aniquilar os concorrentes para reinar sozinho sem o perigo das cobras peçonhentas. Então, em certos pontos, a produção funciona bem: tem alívios cômicos (presentes de Irene Ravache), agressividade, sexo moderado e famílias disfuncionais. Mas falta uma capacidade de incomodar.
Filme visto no 26º Festival do Rio em outubro de 2024.
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