Crítica
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Sinopse
Um retrato pessoal da infância do século 20 nos Estados Unidos. Um jovem que descobre um segredo familiar aterrador encontra nos filmes de cinema o poder para chegar à verdade dos outros e à nossa própria essência.
Crítica
O que é sonho e o que é não apenas possível, mas também concreto? Essa parece ser a maior dúvida a atormentar o protagonista de Os Fabelmans, aquele que tem sido acusado – e não somente isso, mas da mesma forma assumido pelo seu realizador – como o mais pessoal de todos os filmes já dirigidos por Steven Spielberg. Denominação essa, importante saber, que não pode ser carregada de forma leviana. Afinal, está se falando de um dos mais bem sucedidos cineastas de todos os tempos, e não de um mero operário. Além disso, trata-se de um realizador acostumado a esticar os limites da fantasia através da sétima arte, e, com ela, recriar mundos e propor novos universos, unindo presente com passado, imaginação com o factível. Se no início de sua carreira muitos a ele se referiram como o “mago dos efeitos especiais”, algo visto tanto como um elogio como também reducionista, aos poucos foi expandindo seus horizontes, permitindo-se se apropriar de histórias e relatos de outras origens e contextos, indo, assim, o mais longe possível de si mesmo. Tamanho distanciamento, percebe-se agora, foi não apenas recomendado, mas necessário para que fosse não mais adiante, e sim, num movimento contrário, voltando-se a si mesmo e vendo-se como alguém externo, dono de méritos e fragilidades, aspirações e incertezas. O resultado, como se vê na tela, é não apenas uma obra madura e ciente de onde vem e para onde pode acabar indo, mas, acima de tudo, um testemunho de uma vida na qual a ilusão andou sempre lado a lado com o drama da realidade.
Ao agradecer pelo Globo de Ouro recebido por Melhor Direção do ano, Spielberg se virou para o jovem Gabriel LaBelle e afirmou: “muito obrigado por ter sido um Steven muito melhor do que eu jamais consegui ser”. O jovem ator, que até então era conhecido apenas por participações pontuais em títulos como O Predador (2018) ou a série American Gigolo (2022), recebeu do veterano uma oportunidade de ouro: não apenas ser o personagem principal, como também recriar em cena uma versão ficcional daquele que o observava atentamente por detrás das câmeras. Um desafio ao mesmo tempo estimulante, pelo grau de visibilidade intrínseco ao projeto, como também inacreditavelmente tenso, pela exigência assumida – e do qual se mostra à altura, tanto pelo frescor que empresta ao todo, como pela vivacidade que incorpora a cada nova transformação. Ele é Sammy Fabelman, o filho mais velho do casal formado por Burt (Paul Dano) e Mitzi Fabelman (Michelle Williams). Há ainda outras três irmãs menores, com participações pontuais, uma avó paterna (Jeannie Berlin, indicada ao Oscar por Corações em Alta, 1972) e um tio materno (Judd Hirsch, indicado ao Oscar por Gente como a Gente, 1980). Há, por fim, o melhor amigo do pai, a quem sempre se referiu como o “tio Bennie” (Seth Rogen), do qual são todos (uns mais do que os outros) muito próximos. Cada uma dessas figuras será determinante para a formação não apenas da pessoa, mas do profissional que Sammy irá se tornar.
Da ida, ainda criança, pela primeira vez ao cinema, carregado pelas mãos dos pais, às tantas portas que irá bater em busca de uma oportunidade, quando já um jovem adulto, Sammy aos poucos desenvolverá uma íntima relação com o fazer cinematográfico. O olhar por meio de uma câmera, o exercício de paciência e determinação exigido pelo revelar de cada fotograma, a descoberta da imagem e o potencial cognitivo que sua união com outras semelhantes pode gerar, e o impacto causado naqueles que com elas se confrontam, tanto para o bem quanto para o mal, serão fundamentais nesse processo. Sammy é uma figura tão rica em meandros e vontades, em leituras e ambições, que não consegue ficar restrito apenas às ações que executa em um momento ou outro, ou nem mesmo pelas interações que desenvolve ao lado de seus colegas de elenco. Representa, enfim, algo maior e mais duradouro. É o poder daquilo por muitos considerado pequeno, não mais do que um passatempo, mas que, quando executado com propósito e direcionamento, se mostra capaz de operar verdadeiros milagres. A questão, portanto, acaba sendo como lidar com tamanha responsabilidade.
LaBelle, felizmente, não está sozinho. O discurso que Hirsch lhe oferece naquela que é praticamente a única interação dos dois é tão forte que termina por ressoar por toda a história, mas não é o único. Rogen, por outro lado, ao surgir quase irreconhecível, propondo a si mesmo a elaboração de um tipo diverso daquele com o qual está acostumado, vai aos poucos se confirmando uma presença tão amigável quanto ameaçadora, pelo potencial de união e, ao mesmo tempo, desintegrador que oferece a uma unidade familiar não muito sólida. Os espelhos de qualquer criança são seus pais, e no caso de Sammy, estes não eram de fácil compreensão. Visto por todos como um gênio quase inalcançável, Burt ganha docilidade pelos olhos sinceros de Paul Dano, que mesmo sem se permitir fraqueza, torna compreensível o quão árduo deveria ser aos seus qualquer tentativa de contato mais efetivo. Mas o cenário só se mostraria completo pelo entendimento de sua ligação com o estímulo – e mistério – materno. Michelle Williams se faz presente, portanto, através de uma mulher nunca menos que afetuosa, capaz de tomá-lo em seus braços contra o mundo, mas também agressiva e feroz quando ameaçada. É justamente por se colocar em primeiro lugar, antes mesmo do qualquer outro da família, que o exemplo dela termina por se comprovar tão profundo, uma vez que essa será a maior dúvida do garoto: ser o que os demais esperam dele, ou aquilo que, enfim, está preso no seu âmago, tentando desesperadamente se manifestar?
O cinema é o guia condutor desse romance de formação, uma paixão vista em muitos dos longas anteriores do cineasta, mas talvez nunca expressada com tamanho impacto e carinho como em Os Fabelmans. Se olhar para si mesmo parece ser uma febre do momento – Iñarritu, Gray e Mendes são alguns que recentemente se aventuraram pela mesma linha – é importante notar que desde Fellini (e, provavelmente, até mesmo antes, mas talvez não com a mesma destreza e doçura do mestre italiano) esse tem sido um recurso frequente na arte de contar histórias. Spielberg, porém, sabe que tem muito a agregar. Por isso mesmo, entende que, ao invés de apenas enumerar episódios, mais eficiente é escolher dois ou três – o celuloide que revela uma verdade desconhecida, a montagem que cria deuses e monstros, a fantasia capaz de determinar destinos – que, pela originalidade e eficiência, se mostram mais do que suficientes nesse relato de um mundo não apenas encantador, mas, acima de tudo, ao alcance dos comprometidos com a ilusão capaz de se tornar real. Poderiam ser os Barretos ou os Almodóvares, os Bergmans ou os Coppolas, os Hitchcocks ou os Kurosawas: toda família, em qualquer lugar do mundo, já se imaginou eterna. Mas esse é um desejo alcançado somente através de feitos não perdidos no vento, mas registrados enquanto imagem. Tanto na memória como na alegria de qualquer um que, um dia, ousou sonhar além do que lhe parecia ser permitido.
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