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O ano de 2022 foi realmente especial para a belga Virginie Efira. Não apenas estrelou três longas (e um curta), como também ganhou os dois principais prêmios do cinema francês – por trabalhos distintos! O César, entregue pela Academia Francesa, veio (após cinco indicações anteriores) por Revoir Paris (2022), ainda inédito no Brasil (por esse desempenho ganhou também o Magritte, considerado o ‘Oscar da Bélgica’). Já o Prix Lumière, que é a maior premiação entregue pela imprensa no país, veio por sua atuação neste Os Filhos dos Outros, numa disputa ao lado de nomes consagrados, como Juliette Binoche, Noémie Merlant e Laure Calamy. E esse reconhecimento, importante destacar, não veio ao acaso. Por mais que o que aqui se vê seja uma composição até mesmo simples, distante dos malabarismos e reinvenções tão afeitas ao que geralmente é incensado em Hollywood, estará no mergulho profundo que ela promove nessa personagem tão rica em nuances e complexidades que o encanto se estabelece, deslizando pela tela de forma quase hipnotizante, ao mesmo tempo em que se coloca acima do próprio filme em si.
Curioso o título escolhido pela diretora e roteirista Rebecca Zlotowski (premiada em Cannes por Grand Central, 2013). Rachel (Efira) não está, necessariamente, interessada nos filhos dos outros. Assim como a grande maioria das mulheres da sua idade, já tendo passado dos 40 anos, sua preocupação está no relógio biológico interno, que a alerta todos os dias que será cada vez mais difícil gerar uma criança. Dona de uma vida bastante ativa, dá aulas em uma escola de ensino fundamental, ao mesmo tempo em que mantém um bom relacionamento com o ex-marido e se entretém entre aulas de música e encontros com amigos. No meio de todas essas atividades, há tempo também para um namoro que começa quase sem compromisso, mas aos poucos vai ganhando contornos mais sólidos. Ali (Roschdy Zem, em participação discreta, gentilmente reconhecendo – e permitindo – que sua parceira de cena capture as atenções) é um homem bom, de aspirações comedidas, cuja maior preocupação é garantir uma existência tranquila para a filha, a pequena Leïla (Callie Ferreira-Gonçalves, uma revelação). A menina, portanto, é tanto causa quanto desculpa para seus atos.
Sim, pois se no começo ele não hesitará em aproximar uma da outra (“as minhas garotas”), apresentando a namorada e trazendo-a para conviver no ambiente caseiro, aos poucos o que era estranheza (“o que Rachel está fazendo aqui? Ela não tem a casa dela? Você gosta da mamãe, não dessa mulher”, afirma Leïla, num misto de manha e falta de compreensão com as mudanças na dinâmica familiar) vai ganhando outros contornos. Isso não é garantia, no entanto, que a protagonista estará, de fato e de forma definitiva, inserida nesse contexto. Por mais de uma passagem será perceptível a indecisão que percorrerá de forma insistente seus pensamentos: deve seguir insistindo com a ideia de ser mãe, mesmo que este seja um processo cada vez mais arriscado – no começo do filme, o espectador a acompanhará durante um aborto espontâneo e em algumas consultas médicas que afirmam estar seu corpo se fechando para essa possibilidade – ou talvez teria chegado o momento e ir atrás da segunda melhor opção (the next best thing, como se diz em inglês), e aceitar que, afinal, a maternidade pode vir pela criação, e se tornar responsável pela filha do homem que ama é um caminho razoável. Ou não?
Rachel não vive em função de um anseio não realizado. Pelo contrário, sua rotina é intensa, e essa é apenas mais uma de suas preocupações que, no entanto, vai adquirindo uma nova – e até mesmo não imaginada – proporção graças ao relacionamento em que se encontra e o avanço desse em sua vida. Porém, é sabido que são necessários dois para que um romance aconteça, ou seja, qualquer promessa ou juras de amor entre eles podem se transformar em algo menos do que o esperado, bastando para tanto apenas uma mudança na direção do vento. Ela sabe que está pisando em terreno escorregadio, e suas certezas não são mais do que probabilidades, algumas concretas, outras apenas um desejo que pode ou não se realizar. Quando a irmã mais nova engravida e a ex-mulher de Ali volta à cena, as emoções de Rachel se revelam ainda mais difusas. Estaria com inveja ou temerosa de perder algo que nem ao certo sabia ter? Conseguirá substituir aquilo que tinha como intenção por algo alternativo, diferente sim, mas ainda assim não menos importante? Eis um caminho que apenas ela pode percorrer, por mais que cada passo a ser dado não possa ser feito sem lhe exigir um custo para tanto.
Quando o cenário parece ter, enfim, encontrado seu rumo e as coisas se acomodado com o andar – e as consequências – das decisões de cada um dos envolvidos, Zlotowski oferece um epílogo à sua história, um breve diálogo entre dois personagens quase aleatórios, colocando frente a frente Rachel e alguém com quem ela se importou em algum momento de sua trajetória, não tanto por ele, mas pelo que sua salvação poderia representar também para ela. Esse reencontro, visto com a aparente naturalidade das coincidências, exige pouco da atriz enquanto texto a ser dito, mas há tanto que irá carregar apenas no olhar que resume, de maneira impressionante, o caminho por ela percorrido, o quanto que abriu mão, mas também tudo que foi acumulando e trazendo consigo, quase sem perceber, mas que está, sim, em sua conta. Os Filhos dos Outros aponta, portanto, que estes podem estar além de um relacionamento amoroso ou uma condição biológica: é um chamado que se atende ou não, cabendo àquele convocado saber ouvir e responder à altura. Um desafio posto à muitos, mas que apenas os melhores compreendem a dimensão que abraça.
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