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Sinopse

O jovem Antoine Doinel não se dá bem em casa e tampouco na escola. Cercado de adultos que o negligenciam de alguma maneira, ele busca, na companhia do melhor amigo, formas de melhorar e ter alguma perspectiva.

Crítica

O que você pensou quando chegou numa praia e avistou o oceano pela primeira vez? Aquele cenário sem fim de água, que ultrapassa a linha do horizonte e se perde além ver. Como lidar com tamanha imensidão, com essa sensação absurda e quase incontrolável de liberdade? O que fazer quando se sente que o mundo inteiro está a sua disposição, apenas a espera de ser conquistado? Estas e outras indagações semelhantes perpassam a face de Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud), personagem icônico e símbolo da obra de François Truffaut, no momento em que se depara com o mar nunca antes visto na antológica sequência responsável por um dos melhores momentos de Os Incompreendidos. Ele está em fuga, e quando aquele infinito surge diante seus olhos, tudo o que resta – a ele e a nós – é a estagnação. A partir dali, qualquer caminho será possível.

Doinel é um garoto como qualquer outro de sua idade. Às vésperas da adolescência, ainda não descobriu os prazeres do sexo, não definiu o que pretende do seu futuro e nem perde muito tempo pensando no amanhã. Sua rotina consiste, basicamente, em driblar de broncas variadas: do professor intransigente, da mãe negligente, do padrasto pouco tolerante. Com um amigo, colega de travessuras, percebe que pode aprender muito mais sobre a vida gazeando a escola do que frequentando a sala de aula. Quando sob pressão, a mentira lhe surge naturalmente, ainda que as consequências cobrem seu preço posteriormente. Em casa, é constantemente lembrado o peso que representa aos pais, seja pela figura materna esquiva e sexy, que ao o encontrar na rua prefere virar o rosto a enfrentá-lo, ou por aquele que afirma tê-lo assumido, ainda que na primeira oportunidade prefira admitir não saber o que fazer com ele. Sem destino nem expectativas, Antoine encara a vida como um presente a ser conquistado, ainda que se sinta em constante desvantagem consigo mesmo.

Marco inicial da nouvelle vague francesa, Os Incompreendidos é o primeiro filme feito pelo até então crítico de cinema François Truffaut, passo inicial de uma das carreiras mais brilhantes da cinematografia mundial. Portanto, não chega a ser nenhuma surpresa quando observamos que os únicos momentos realmente felizes vividos pelo protagonista são numa sala de cinema. Após acender uma vela para Balzac – uma promessa feita para uma tarefa escolar – o menino quase coloca fogo no minúsculo apartamento onde a família vive. Se a reação inicial é de reprimenda, ela logo se transforma num passeio dos três em busca de diversão. Não ficamos sabendo qual o título em cartaz, mas apenas a oportunidade de vê-los em êxtase após o programa já indica um prazer especial. Assim como a aventura que tem ao lado do amigo em busca de novas emoções na ficção.

Assumidamente autobiográfico, Os Incompreendidos tem muito da história de vida de Truffaut, ele mesmo um órfão que por pouco não levou uma vida de marginalidade. Este é também um dos caminhos possíveis do protagonista, que até tenta se endireitar, mas acaba constantemente sendo levado de volta para um rumo errante. Antoine Doinel, o personagem, teria sua história desdobrada em mais quatro momentos pelo diretor: no média Antoine & Colette, um dos episódios do coletivo O Amor aos 20 Anos (1962), e nos longas Beijos Proibidos (1968), Domicílio Conjugal (1970) e O Amor em Fuga (1979). Léaud, o intérprete e alter-ego do realizador, marcaria presença também em outros títulos do cineasta, mas nunca com uma presença tão marcante quanto a vista aqui.

Mais difícil do que comentar sobre um título ruim – afinal, a crítica como ataque perde seu valor – é quando nos deparamos com um trabalho irretocável, pois dificilmente o que for escrito a respeito fará jus ao que se vê na tela. Exatamente o que acontece com Os Incompreendidos, uma obra impossível de não ser... compreendida, se a piada infame for permitida. Pouco sabemos o que havia acontecido antes à Doinel, e no momento em que a narrativa o abandona há ainda tanto a ser dito que somente o silêncio poderá agregar algum significado. Assim, a evidente identificação do espectador com o personagem se realiza por completo, com cada um da audiência preenchendo os espaços vazios de acordo com suas próprias experiências. Somos todos também um pouco Antoine Doinel, e François Truffaut nos mostra isso sem discursos nem didatismo, fazendo uso apenas de imagens possibilitadas através do exercício cinematográfico.

Indicado ao Oscar de Melhor Roteiro Original e premiado como Melhor Direção no Festival de Cannes, Os Incompreendidos é o longa que todo realizador estreante gostaria de ter feito, mas que somente Truffaut alcançou em sua plenitude. Muitos outros trabalhos do cineasta ficariam marcados na memória de cinéfilos e apreciadores da sétima arte, mas poucos com tamanha força como a aqui experimentada. Assim como o protagonista deste romance de formação, somos levados pelos acasos e desatinos diários, aprendendo como lidar com eles no durante, sem nenhum preparo prévio. Se Doinel escapa de casa, da escola, das ruas, do reformatório e do abandono, o vemos sorrir de verdade apenas diante da tela grande exposta na sala escura. Assim como qualquer um que tenha o privilégio de conferir e vivenciar este filme absolutamente arrebatador.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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