Crítica
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Sinopse
Na virada do ano 1983, os habitantes de Vitória, no Espírito Santo, comemoram o réveillon. Mas o jovem Suzano não tem motivos para festejar: ele se sente doente, e percebe pequenas marcas em seu corpo. Ao redor, outros amigos gays e travestis também começam a sofrer de um novo mal, ainda sem nome, que provoca a morte de muitos deles. Suzano decide se isolar para pesquisar, sozinho, aquilo que viria a ser conhecido como o HIV/AIDS.
Crítica
A metáfora da guerra serve de ponto de partida ao diretor Rodrigo de Oliveira para discutir o surgimento do HIV/AIDS em Os Primeiros Soldados. Antes de ser visto como biólogo, capixaba e gay, Suzano (Johnny Massaro) se converte no soldado de uma batalha literalmente invisível. Ele percorre a natureza em solitário, confrontado aos próprios pensamentos e angústias. No entanto, jamais se rende à doença: a comparação entre as primeiras vítimas do vírus e as baixas de militares trata de colocar os protagonistas numa posição ativa e inquisidora, ao invés do simples fatalismo com que se costumam retratar os homens gays e as travestis, em especial, que sofreram com o grande mal desta época. Suzano se esforça em compreender o que lhe passa: ele toma notas e busca soluções enquanto gerencia a chegada de novos remédios dos quais se torna cobaia. Além disso, registra seus sentimentos à posteridade. Estes jovens possuem a consciência de que algo importante acontece a eles e a toda a sociedade da época: “Eles tentam nos matar desde que o mundo é mundo”, comenta a amiga Rose (Renata Carvalho). Há consciência de classe, luta política e interesse médico por trás da atitude de um trio de amigos (completado por Humberto, interpretado por Vitor Camilo) em se isolar no campo, comparando seus sintomas e oferecendo apoio mútuo conforme o quadro clínico se agrava.
Um dos aspectos mais curiosos deste drama se encontra na discussão sobre a AIDS quando ainda não havia sido catalogada, compreendida nem discutida enquanto tal. Os diálogos se impregnam de uma mistura de pudor, vergonha e falta de palavras diante do novo: “Você acha que ele tem…?”, pergunta a irmã de Suzano, Maura (Clara Choveaux), ao que o médico consente com um discreto aceno de cabeça. Os heróis comentam “isso que a gente tem”, este ataque sem rosto nem nome. Os Primeiros Soldados gira inteiramente em torno do elemento onipresente, opressor, e ainda tabu, por afetar, num primeiro momento, sobretudo a população LGBTQIA+ (que nem sequer se identificava por esta sigla, vale lembrar). Suzano, Rose, Humberto, Maura, o sobrinho Muriel (Alex Bonini) pensam na ameaça o tempo inteiro, porém se encontram impossibilitados de falar a respeito, assaltados pela ignorância e pelo horror. Conforme descrevia Susan Sontag a respeito das fotografias de guerra em Diante da Dor dos Outros (2003), existe um fascínio inegável na imagem da morte, combinando identificação e estranhamento, sedução e repulsa. Aqueles personagens poderiam ser cada um de nós, e ao mesmo, nunca seriam um de nós, que nos encontramos confortavelmente sentados na poltrona do cinema. O diretor elege um verdadeiro protagonista, o HIV, este vírus ausente em diálogos, porque ainda novo para os anos de 1982 e 1983. Trata-se de um potente exercício de representação pela ausência.
Em seus trabalhos de curta-metragem, Rodrigo de Oliveira demonstrava o prazer clássico pelos planos bem construídos, fixos, com personagens posados e falas visivelmente construídas e ensaiadas. Neste longa-metragem, repete a dose com uma janela de imagem menos retangular que de costume (em provável conexão com a linguagem do vídeo, à qual faz alusão). Em paralelo, os enquadramentos são bem estabelecidos e pesados, estáticos, seja para um simples telefonema de Maura ou para a investigação das novas marcas na sola do pé de Humberto. Aposta-se na elegância austera dos cenários simples e azulados, os figurinos discretos (as roupas de cor creme de Maura, as calças altas e camisas abertas de Suzano), as conversas pausadas. É interessante analisar esta nova geração de cineastas munidos de temas ousados e discursos radicais, embora apaixonados pelo neoclassicismo, privilegiando a estética herdeira de Manoel de Oliveira àquela dos expoentes do cinema queer. Marco Dutra e Caetano Gotardo viajavam alguns séculos na História do Brasil com uma severidade intimidante em Todos os Mortos (2020), e Rodrigo de Oliveira opera em chave semelhante. Durante uma ligação telefônica, ele posiciona o biólogo diante de um espelho, ao lado de um buquê de flores, numa composição que remete às pinturas impressionistas de Edgar Degas e Richard Emil Miller. Nota-se a apreciação do gesto e do controle de cena, ao invés de uma tentativa de apreender o acaso. O mundo se adapta às necessidades da câmera, não o contrário.
Esta escolha jamais implica num formalismo ostensivo, felizmente. A rigidez da mise en scène contribui a equilibrar o teor melodramático, permitindo aos personagens chorarem sem que o espectador seja convidado a fazer o mesmo. O projeto convida à reflexão com o devido distanciamento crítico, em oposição a somente lamentar pelo destino destas figuras. Nos instantes sentimentais, toma-se a precaução de abrir os enquadramentos, valorizar os espaços e evitar o fetiche da miséria ou a temida lágrima em close-up, associada ao imaginário novelesco. Os corpos são preservados em sua intimidade: dispensam-se os planos de detalhe das manchas no corpo, que se convertem em arte quando são fotografadas e “expostas" pelas mãos dos frequentadores da casa noturna Genet. A direção de fotografia desenha belíssimas sequências iluminadas pelo flash das câmeras antigas, adequadas à estética oitentista. Neste cenário, Oliveira oferece cenas de grande interesse plástico, discursivo e narrativo, o que inclui a apresentação de Rose e a dança dos rapazes. O flerte entre Humberto e um antigo conhecido, mediado pelo olhar da câmera de vídeo, produz um feroz erotismo das imagens. Em paralelo, os atores navegam por períodos de resiliência, cansaço e descontração: Renata Carvalho, em estado de graça, devora a câmera num monólogo excelente (“Se essa peste é gay, a mãe dela é travesti”); Johnny Massaro intercala os olhos marejados e o teor afetado do início com a chacota de seus próprios maneirismos a seguir, e a timidez de Vitor Camilo equilibra de maneira interessante o tom expansivo dos colegas. As drogas chamadas “foda-se” (por terem eficácia e efeitos colaterais desconhecidos) condensam o efeito tragicômico desta clausura entre amigos.
A propósito de tragicomédias, a experiência do drama se potencializa por apresentar o nascimento de uma epidemia enquanto os espectadores se encontram numa pandemia. O fator temporal possui peso em si: passados 40 anos, a cura para a AIDS continua indisponível, e o estigma contra gays, lésbicas, travestis e transgêneros se mantém (embora os heterossexuais constituam o grupo de maior contaminação do vírus). Entretanto, compreendemos a sensação de um mal invisível dizimando parte considerável da população, despertando o medo do outro e acentuando, em contrapartida, a necessidade de comunhão. Em cerca de um ano, milhões (bilhões?) de dólares do mundo inteiro foram empregados na descoberta rápida para a vacina contra a Covid-19, enquanto soropositivos seguem tomando seus medicamentos retrovirais. Os Primeiros Soldados abraça um universo composto essencialmente por homens gays e travestis, retirando o resto da sociedade da equação e evitando o preconceito como motor de conflito — o sofrimento interno destes personagens basta à psicologia, dispensando o calvário da LGBTfobia, discretamente evocada na cena do ônibus, fora de quadro. A irmã de Suzano o acolhe com carinho (Clara Choveux reafirma seu impressionante talento), enquanto o sobrinho gay admira e apoia o tio. Já o namorado da França segue em contato, ajudando-os à distância, mesmo ausente em imagens — o que permite considerá-lo um alter-ego do cineasta. Oliveira estabelece uma rede de afetos, homenageando os soldados da linha de frente por sua força, ao invés de seu sofrimento. A maior tristeza não se encontra no fato de vê-los perecer, e sim na percepção de que, em 2021, a guerra continua.
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Acabei de assistir e lendo agora essa crítica não poderia deixar de dizer o quanto ela é cirúrgica e acertiva. É exatamente isso que acabei de assistir. Que bom saber que temos tantos talentos. Tanto na direção de cinema como nas atuações. E por que pontuar, na crítica especializada. Viva o cinema brasileiro. Viva a cultura.