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Com quase 90 anos de idade, mais de 50 de carreira, tendo vivido de perto a ebulição de movimentos como a Nouvelle Vague e observado todas as transformações da linguagem cinematográfica ocorridas ao longo destas décadas, Paul Vecchiali se mantém, até hoje, como um autor outsider por excelência. Sem nunca, de fato, ter se filiado a qualquer tendência, retrabalhando elementos de suas variadas influências para compor um cinema singular, o francês segue atuando às margens da produção artística de seu país. Não é com surpresa, portanto, que se constata a identificação profunda do cineasta justamente com as figuras periféricas, os excluídos, os “malditos”, como é o caso dos protagonistas deste Os 7 Desertores, seu mais recente longa.
Os personagens citados no título, quatro homens e três mulheres, reunidos ao acaso em meio ao caos de uma guerra não definida, encontram abrigo nas ruínas de um vilarejo, onde, nos primeiros minutos de projeção, realizam as devidas apresentações formais. Entre totais desconhecidos, alguns membros desse heterogêneo grupo revelam ter ligações que remontam ao passado, caso do soldado Simon (Pascal Cervo), que traduz suas angústias nas palavras contidas no diário do avô, da romântica idealista Natacha (Astrid Adverbe) e da ex-marquesa (Simone Tassimot), hoje uma freira desbocada. O instinto de sobrevivência e os sentimentos compartilhados, contudo, terminam por conectar a todos, conhecidos ou não, na criação de uma espécie de comunidade, uma versão particular de sociedade moldada pelas condições extremas impostas pelo conflito.
Vecchiali apresenta esse microcosmo fiel ao estilo formal e dramático que marca seus últimos longas, como O Ignorante (2016) e É o Amor (2015): o conteúdo verborrágico e filosófico, o humor irônico, o aspecto episódico da narrativa, a encenação antinaturalista, numa busca pela desconstrução dos arquétipos dos melodramas franceses da década de 1930, renegados por gerações posteriores de cinéfilos, o desapego ao realismo como forma de exaltar o aspecto lúdico (o som de um tiro e a reação do ator são suficientes para que Vecchiali registre um assassinato, por exemplo. Sem sangue, pólvora ou balas). A ambientação teatralizada, reduzida basicamente a um único cenário, remete à sua adaptação de Dostoiévski, Noites Brancas no Píer (2014), e a presença de Cervo, Adverbe e Tassimot, rostos recorrentes na fase mais recente de sua obra, também contribuem para certa sensação de familiaridade.
Pela temática da guerra, ambientação bucólica e carga poética dos diálogos, Os 7 Desertores guarda uma proximidade com o excepcional Guerra do Paraguay (2017), de Luiz Rosemberg Filho. Não são poucas as similaridades entre as trajetórias marginais dos dois cineastas, ou mesmo entre suas visões criativas, entretanto, enquanto o longa do veterano brasileiro se aprofunda no exercício alegórico de latente viés político e social, o do francês, ainda que não seja isento de leituras da mesma natureza, se agarra ao lado mais humano, dos sentimentos, das relações, do amor e do sexo. É a qualidade passional do cinema de Vecchiali que aflora, fazendo com que, mesmo cercado pelo horror e pelo medo, o desejo – reprimido ou explícito - encontre espaço para se manifestar.
O universo representado é dominado pela atração, pelo prazer e pela desilusão, seja através do romance delicado de Simon e Natacha – que carrega a pureza da paixão juvenil, ganhando contornos shakespearianos de tragédia em seu desfecho – ou no triângulo amoroso que se insinua entre o bruto Serge (Bruno Davézé), a bela Madeleine (Marianne Basler, outro nome habitual nos filmes de Vecchiali) e o anarquista com alma de artista Alexandre (Jean-Philippe Puymartin), que pode ser visto como alter ego do cineasta. Um universo onde o êxtase do gozo se confunde com o estupor da morte – como visto na sequência onde o sétimo desertor, Denis (Ugo Broussot), se masturba ao ouvir Alexandre descrever sua fantasia sexual com Madeleine, antes de ser assassinado. E onde o som das explosões e metralhadores se mistura às canções entoadas também pelo personagem de Puymartin – a música e a dança sempre funcionando como meios libertadores para Vecchiali.
Por trás da cortina de volúpia, os personagens são colocados no palco metalinguístico armado por Vecchiali, que assume seu papel de “Senhor da Guerra”, a quem Madeleine se dirige diretamente, embebida de fúria, quebrando a quarta parede e exigindo sua emancipação. O detentor do poder de acabar com o conflito invisível num simples apertar de botões, desligando o gravador com os efeitos sonoros bélicos e ligando outro com sons da natureza para estabelecer o cessar fogo, a paz. Esse é Vecchiali, o criador ilusionista capaz de se livrar das correntes que o aprisionam – as amarras das convenções narrativas – seguindo o exemplo de Samuel Fuller e Jean-Luc Godard, dois dos combatentes pela libertação da linguagem aos quais Os 7 Desertores é dedicado.
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