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Sinopse

Othelo, O Grande narra a história de vida de Sebastião Bernardes de Souza Prata, o inesquecível Grande Otelo, um dos maiores atores e comediantes do Brasil. Negro, órfão e neto de escravos, escapou da pobreza e construiu uma carreira que rompeu todas as barreiras que lhe foram impostas durante a primeira metade do século XX.

Crítica

Um compositor surrado pela vida, explorado por malandros e que acabou de perder um filho entoa a sua nova criação de modo improvisado para a mais festejada estrela da época. Com os olhos marejados, ele expressa um misto de esperança e tristeza profunda, enquanto a artista acompanha a sua apresentação fitando o papel com a letra. O semblante do homem é iluminado por algo maior assim que a cantora começa a proferir, com uma voz angelical, as suas palavras escritas para elaborar a dor em forma de samba. Trata-se de um dos mais (senão o mais) bonitos momento do cinema brasileiro, protagonizado por Grande Otelo e Ângela Maria em Rio, Zona Norte (1957). E o diretor Lucas H. Rossi dos Santos sabiamente reproduz essa cena emblemática em Othelo, O Grande, documentário que reverencia a trajetória do multiartista negro nascido na cidade de Uberlândia, motivado desde cedo pela possibilidade de sobressair numa sociedade racista por meio da beleza da arte. Um sujeito célebre por papeis impagáveis nas Chanchadas que promoveram um matrimônio até então inédito entre público e cinema brasileiro. Em vez de utilizar depoimentos de figuras que conheceram o protagonista e os costurar com imagens de arquivo, o cineasta prefere aproveitar apenas a voz do próprio protagonista e elencar esses momentos icônicos de Otelo no cinema, mas não de modo banal, ilustrando a sua vida com eles.

Othelo, O Grande foge (ainda bem) àquela ideia do documentário jornalístico preocupado com a informação. Lucas H. Rossi dos Santos pode até nem sempre conseguir dar consistência ao relato fracionado da trajetória de um sujeito brilhante como Grande Otelo, mas propõe uma viagem menos convencional pela biografia do artista. É interessante a opção de utilizar como narrador apenas o próprio protagonista, num processo que deve ter sido extenuante de garimpo das entrevistas dele para programas de TV. Portanto, não há testemunhos de outras pessoas, tampouco de especialistas que refletem sobre a trajetória do biografado. A essa arqueologia que mostra Grande Otelo em diversos momentos segue-se o trabalho de costura que dá liga ao material originalmente disperso. Desse jeito, um depoimento dado em determinado instante é justaposto a outro de décadas mais tarde para gerar uma complementariedade. Claro, devemos ponderar aquilo que o realizador escolheu dentro do recorte menos informativo do que alusivo. E Lucas prefere mergulhar um pouco mais na melancolia de um homem que foi vítima da segregação racial naturalizada no seu tempo, mas sem com isso perder de vista a ode ao gênio dos palcos e das telas. É recorrente Grande Otelo falando que nunca foi pago como deveria, que se sentiu muito explorado. Portanto, o personagem de Rio, Zona Norte tem um quê dele próprio.

A inconsistência citada anteriormente neste texto tem, em parte, a ver com as repetições na construção do discurso de Othelo, O Grande. Lucas H. Rossi dos Santos muitas vezes utiliza o arquivo de Grande Otelo meio displicentemente para preencher o espaço entre os depoimentos do artista e as cenas de trabalhos importantes de sua filmografia. O diretor aposta numa dinâmica ligeiramente reiterativa que alterna trechos de filmes, falas do protagonista, e fotografias estáticas, quase sempre nessa mesma ordem, o que cria um caminho pouco inventivo do ponto de vista da linguagem. Em vários momentos, Lucas perde a oportunidade de modular as ênfases, de permanecer falando um pouquinho mais de determinado assunto, nem que isso obrigue a abordar menos outro que não é tão significativo para o retrato orientado pela tristeza do gênio. Aliás, o documentário fica num meio termo entre a reconstituição de uma vida e o recorte dela a partir dos aspectos sociais que a influenciaram, principalmente o racismo e tudo que veio a reboque dele. Dentre os aspectos positivos do filme está esse olhar que busca situar um homem maiúsculo do cenário artístico brasileiro como alguém de modos simples, de pensamento e retórica sofisticada, mas que sublimou parte de suas tristezas no palco e nas telas, como quando filma uma cena em Carnaval no Fogo (1949) logo após viver uma tragédia pessoal.

Um dos assuntos recorrentes na fala de Grande Otelo é o dinheiro, ou seja, o aspecto prático de uma profissão que certamente lhe ofereceu inúmeros outros ganhos mais condizentes com a estatura artística desproporcional aos seus 1,50m de altura. Com um tom de voz firme e dono de uma clareza invejável, ele menciona a subsistência financeira a partir de seu trabalho como uma vitória em parte minimizada pelas seguidas explorações à qual foi submetido – e fica implícito o teor racial dessa conduta recorrente de parte de seus contratantes. Othelo, O Grande é uma homenagem ao homem enorme que nos presenteou com personagens inesquecíveis, também interessada pelo aspecto humano do ícone. No entanto, mesmo que Lucas H. Rossi dos Santos escape aos lugares-comuns do documentário jornalístico e proponha um percurso mais, digamos, poroso no contato com a vida e a obra de Grande Otelo, ele aborda tudo de uma perspectiva meio vaga, nem sempre conseguindo a partir disso sugerir o suficiente. Do ponto de vista do discurso, há uma ideia que funciona como o guarda-chuva principal: a humanidade do homem comum observado na essência em dinâmicas cotidianas, como a convivência em família e a ponderação sobre a solidão. Em torno da linha geral, são costurados os vislumbres da obra e os subtextos, mas de modo pouco firme, o que ocasiona uma dispersão. Mesmo assim, trata-se de um tributo valioso a esse artista, principalmente porque ao menos tenta escapar do óbvio.
Filme visto durante a 25º Festival do Rio (2023)

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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