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Sinopse

Em Ouro Verde, Martin é injustamente condenado à morte na Indonésia. Agora, sua mãe, Carole, embarca em uma luta contra para tentar salvá-lo. Mas para isso, terá de enfrentar inúmeros exploradores de óleo de palma responsáveis pelo desmatamento. Selecionado para o Festival Varilux de Cinema Francês 2024.

Festival Varilux

Crítica

Um bom primeiro passo para qualquer análise cinematográfica é definir: estamos falando de um filme de personagens ou de situações? Os exemplares de personagens tendem a acontecer de dentro para fora, logo privilegiando sentimentos, morais, contradições, além de complexidades humanas, emocionais e psicológicas. Os de situações tendem a acontecer de fora para dentro, ou seja, priorizando contextos, fatos históricos, grandes ocasiões e nisso inserindo as pessoas. Ouro Verde é o típico filme de situação, pois utiliza o material humano como outro elemento do discurso, não como o protagonista. O cineasta Édouard Bergeon começa mostrando o jovem idealista Martin (Félix Moati) sendo emboscado na Indonésia depois de flagrar a ação das milícias a serviço dos oligopólios internacionais atuantes em terras ancestrais. Engajado na luta contra a desterritorialização dos povos originários da Ásia, ele se disfarça de voluntário de uma ONG para documentar a opressão das populações originárias pelo avanço da indústria do óleo de palma –insumo bastante popular vendido pelo mundo como alternativa sustentável a outros produtos reconhecidamente agressivos ao meio-ambiente. Capturado após testemunhar o que não devia, ele é vítima de uma conspiração, acusado de tráfico de drogas e transformado em réu de um processo com finalidades políticas e econômicas. O filme parte da denúncia da “indústria verde”.

Na verdade, Ouro Verde é bem superficial nessa ideia de colocar o dedo na ferida de um discurso contraditório. Primeiro, porque perde tempo demais no desenvolvimento do labirinto legal no qual o protagonista é colocado. Segundo, porque também desperdiça recursos inutilmente tentando alçar a mãe de Martin, Carole (Alexandra Lamy), também à condição protagonista. Desse modo, a constatação de que até mesmo a onda ecológica cria um mercado com ganhos gigantescos, assim somente deslocando toda uma estrutura de poder, perde contundência. Édouard Bergeon se divide entre o flagelo de Martin no cárcere (embora não consiga criar uma noção prática de insalubridade durante a prisão) e a luta de Carole para conseguir comprovar a inocência do filho – mais do que isso, ajudar a revelar uma farsa. Repleto de boas intenções, o longa-metragem transforma rapidamente os dois em figuras ocas, quase sem algo que os preencha para além da determinação ideológica do rapaz e da coragem da mãe decidida a ir às últimas consequências para evitar uma provável pena de morte. Como não estamos diante de um filme de personagens, é quase natural que mãe e filho sejam vistos como peões de um jogo geopolítico complicado. Porém, para isso ser adequado o diretor precisaria investir mais nas articulações do suspense e estar menos empenhado em enxergar complexidades onde não há.

Édouard Bergeon oferece muitas explicações simplistas para comportamentos indicativos. Por exemplo, ele se sente na obrigação de esclarecer ao público de onde vem o senso de justiça inabalável de Martin, para isso guardando a informação que poderia ser mais interessante do ponto de vista dramático se fosse logo revelada. Tudo é muito esmiuçado e justificado para o espectador não se perder em meio às conspirações que envolvem governos coniventes com práticas agressivas de grandes empresas. Cada comportamento é sustentado por uma tese, por algo que lhe dê sentido, por explanações paternalistas que escancaram a falta de confiança do realizador na capacidade do público de discernir e conviver com a dúvida. Aliás, ainda dentro dessa oscilação pouco produtiva entre o suspense corporativo e o drama pessoal/familiar, Bergeon parece sempre disposto a destruir as interrogações, em meio a isso demonstrando uma atenção absolutamente contraditória aos personagens num filme...de situação. E, ao mesmo tempo, o cineasta não se esforça minimamente para fazer Martin e Carole serem mais do que o mártir decidido a morrer em função de seus princípios e a mãe determinada a brigar com presidentes e milicianos se isso garantir a obtenção da liberdade do filho – nem que isso seja às custas da manutenção do status quo referente às atividades exploratórias num país estrangeiro.

Ouro Verde é um filme prolixo que parece orgulhoso de sua observação “atenta” de um mundo subterrâneo nutrido pelo sofrimento dos desvalidos em função do enriquecimento dos canalhas. E é importante questionar: qual é o papel dos povos originários indonésios no filme? O de vítimas, quando muito de hospitaleiros aos estrangeiros responsáveis. A única personagem local importante é a ativista Nila Jawad (Julie Chen), citada como autoridade respeitada, mas efetivamente tratada como possível interesse romântico de Martin e outra das vítimas da conspiração internacional. A Indonésia é vista como país estratégico do ponto de vista da chamada “economia verde”, uma nação repleta de autoridades comprometidas com interesses econômicos. Felizmente, Édouard Bergeon implica também políticos e lobistas franceses no problema, ainda que ao observar criticamente os europeus ele seja muito menos enfático. No fim das contas, o que fica em pé nas quase duas horas de filme é o velho olhar forasteiro sobre os problemas internos da nação estrangeira soberana. Alguns podem dizer: mas é o diagnóstico de um problema de implicações globais. Sem dúvida, mas feito com a intenção de quem assume parte da culpa, desde que o cenário degradado a ser criticado seja o do vizinho distante. Pouco atento à humanidade dos personagens e não menos displicente ao diagnosticar um problema com enormes ramificações, o cineasta apresenta um anacronismo quanto ao discurso ambiental.

Filme visto no Festival Varilux de Cinema Francês em novembro de 2024.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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