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No início de Outrage Coda, capítulo derradeiro da trilogia de Takeshi Kitano sobre o submundo da máfia japonesa, encontramos Otomo, o protagonista da saga, vivido pelo próprio cineasta, pescando ao lado de um amigo numa praia da Coreia do Sul. É lá que o personagem agora vive, cinco anos após os eventos de Outrage: Beyond (2012), comandando uma boate/esquema de prostituição, numa operação modesta, mas, ainda assim, filiada à sua antiga família Yakuza. Essa manutenção dos laços com o crime organizado, como evidenciado ao longo de toda a jornada de Otomo, se dá muito mais por uma questão moral, de respeito aos códigos, do que pela ambição. Afinal, mesmo diretamente envolvido na ação, assumindo o papel de responsável pelo trabalho sujo, Otomo sempre demonstrou o desejo de se manter às margens das disputas centrais, e pessoais, por poder.
Essa relação conflituosa com o universo da Yakuza reflete a própria relação de Kitano com os filmes do gênero. Ainda que intercaladas a trabalhos diversificados, como O Mar Mais Silencioso Daquele Verão (1991) ou Verão Feliz (1999), foram justamente as incursões pela temática policial, das mais cruas às mais poéticas, que estabeleceram Kitano como autor de cinema, eclipsando, ao menos para o público estrangeiro, a imagem de comediante popular construída ao longo de anos na televisão japonesa. Títulos como Policial Violento (1989), Adrenalina Máxima (1993) e Hana-Bi: Fogos de Artifício (1997) são provas inegáveis da intimidade do realizador com as convenções do gênero, bem como da depuração de seu estilo. Contudo, após Brother: A Máfia Japonesa Yakuza em Los Angeles (2000), Kitano decidiu se afastar desse meio, partindo para a exploração das raízes do cinema de seu país com Dolls (2002) e Zatoichi (2003).
Tal guinada no direcionamento culminou num mergulho de Kitano na esfera autoanalítica, questionando sua posição como criador pelas vias da metalinguagem na trilogia informal composta por Takeshis’ (2005), Glória ao Cineasta! (2007) e Aquiles e a Tartaruga (2008). Passada uma década, ele se viu preparado para um reencontro com o gênero, descobrindo no olhar cínico de Otomo a formal ideal de promovê-lo. É de modo irônico que o diretor se volta ao imaginário da máfia, característica que domina tanto a trilogia Outrage quanto o longa realizado antes deste último episódio, Ryuzo e Seus Sete Capangas (2015), no qual a ironia era elevada ao nível da comédia paródica. Aqui a proposta é menos extrema, com Kitano mais uma vez espelhando sua postura na de Otomo: distanciada e corrosiva, mas, ao mesmo tempo, revelando-se fiel e reverencial a certas tradições.
Apesar de apontar anacronismos, fazendo piadas com a dificuldade de adaptação aos novos tempos em questões específicas, Kitano não deixa de exaltar a essência, como a da motivação de Otomo. Algo que não está ligado à vontade de enriquecer ou de recuperar sua posição na hierarquia da família, mas sim a uma quebra dos códigos, que ocorre quando o jovem sub-chefe de um clã rival, de passagem pela Coreia do Sul, se recusa a pagar pelo programa com as garotas de Otomo e ainda manda matar um de seus subordinados. Mesmo cansado, e sabendo estar provavelmente trilhando um caminho sem volta, o protagonista se sente obrigado a restabelecer a ordem. Um sentimento de necessidade de correção que também emana da intricada trama de jogos de poder e traições estabelecida entre os membros do alto escalão da Yakuza.
Do questionamento dos chefes mais experiente sobre o líder da família – um jovem arrogante, antes responsável apenas pela parte burocrática dos negócios – ao tratamento dado ao personagem que origina o conflito – um completo estúpido, feito de marionete por todos os lados – nota-se o anseio pelo resgate de costumes. A dinâmica hierárquica apresentada, com sua profusão de nomes, reviravoltas e referências a acontecimentos passados, torna o primeiro ato ligeiramente confuso. No entanto, até isso soa como algo intencional da parte de Kitano, evidenciando a desordem causada pela falta de valores morais – por mais incongruentes que possam parecer – com o mesmo sarcasmo com o qual trata a violência, que surge em rompantes precisamente calculados.
Valorizadas pela montagem do próprio Kitano, sequências como a do tiroteio dentro da van ou o massacre na festa resvalam na comicidade sem perder seu peso. O mesmo ocorre com a cena da execução envolvendo explosivos e sadomasoquismo que, se não é tão marcante quanto aquela da máquina lançadora de bolas de baseball do capítulo anterior, ainda faz jus à marca da série de apresentar ao menos uma morte absurda e estilizada. Em meio ao sangue, aos toques de humor e à proposta de desconstrução de arquétipos, Outrage Coda ganha ares mais trágicos. Algo que parece inevitável frente a obrigação de Otomo com sua ética particular levada às últimas consequências, única forma deste conseguir se ver, enfim, livre. Tal qual Kitano, que finaliza a trilogia permanecendo leal aos seus princípios, podendo agora buscar novos horizontes a serem desbravados.
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