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Sinopse
Em Pacto da Viola, Alex é um músico sertanejo que sonha se tornar um músico habilidoso igual ao seu pai, Lázaro. Ele retorna ao Urucuia, no coração do sertão mineiro, onde a agroindústria ameaça o meio ambiente e as tradições locais, para ajudar o pai que está doente. Lázaro é capitão de folia e acredita que tem uma dívida com os santos que garantem sua saúde. No entanto, rumores locais dizem que sua dívida não é com os santos, mas com o diabo. Premiado no 57º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (2024).
Crítica
Eis uma bem-vinda incursão pelo cinema de gênero no Brasil. Mas ao contrário do que tem se tornado cada vez mais comum por estas paragens, em que jumpscares, trilha sonora reincidente e edição picotada tem se apresentado quase como uma regra, em Pacto da Viola o ritmo é outro – felizmente. O diretor e roteirista Guilherme Bacalhao – novato no formato, mas longe de ser um estreante – demonstra uma curiosa segurança quanto ao que tem pela frente, tanto no que diz respeito ao desenrolar da história, quanto na elaboração e consolidação dos personagens envolvidos com os acontecimentos a serem presenciados. Os laços entre eles são sólidos, por mais que se mostrem em dinâmicas distintas: há o forasteiro (ou quase isso) que pouco acredita, assim como os antigos que guardam em meias palavras o muito que sabem a respeito daquilo que não é visto, nem mesmo mencionado. Entre suspeitas e sugestões, o mistério vai sendo construído. Sem entregas imediatas ou efeitos fugazes, mas, por outro lado, alcançando um efeito mais perverso e duradouro.
Fala-se do mal pois esse é o segredo pouco disfarçado que se esconde por detrás dos principais eventos de Pacto da Viola. Ao receber a notícia de que o pai está doente, Alex (Wellington Abreu, de O Espaço Infinito, 2023) decide largar – ainda que temporariamente, segundo seus planos originais – a vida na capital para retornar ao interior. Na pequena Urucuia, o que encontra é uma situação diferente daquela que desfrutou quando criança. O agronegócio tomou conta de tudo e de todos – os jovens que ali persistem dependem “da fazenda” para qualquer forma de trabalho e de subsistência, enquanto a própria geografia do lugar agora se vê sujeita aos mandos e desmandos dos “patrões” – e a esperança de manter velhas tradições e costumes se mostra cada dia mais distante. O rapaz sonha em ser cantor sertanejo, mas tudo que tem é uma viola velha e uma pilha de CDs gravados de forma independente, um produto pelo qual mais ninguém se interessa. Como, então, evitar o mesmo destino compartilhado por todos ao seu redor? Seriam apenas essas as suas opções: sucumbir ou fugir?
É interessante a relação que aos poucos vai sendo exposta entre o dito mundo civilizado e as lendas e o folclore que alimenta a crença dos locais. Ao chegar e se deparar com o pai acamado, a primeira reação de Alex é a de levá-lo ao posto de saúde, uma vontade que é logo demovida pela tia encarregada dos cuidados do enfermo. Há outros procedimentos a serem tentados antes. Uma reza forte, um ritual de “costura” do corpo, a sagração do boi dedicado aos santos. Mas nada impede o guizo do chocalho da cascavel que vai se aproximando dia após dia. Ninguém mais o ouve, mas o idoso sabe que sua hora está chegando. O que teria feito ele para exibir tamanho temor frente ao pagamento dessa suposta dívida? A revelação chega ao jovem de modo enviesado: e se o acordo feito tantos anos atrás não fora com alguém lá de cima, mas com uma força ainda mais sedutora e repleta de segundas intenções vinda lá debaixo? Seria também por isso que o pai nunca mais tocou após a morte da esposa? O descrente, portanto, também se pegará acreditando.
O dilema de um vai se aproximando do outro, apontando para paralelos entre o ontem e o hoje. Afinal, se o velho não quer mais fazer uso do dom recebido, principalmente por negar o alto preço que esse lhe custou, o que teria a perder o filho, uma vez que toda a sua ânsia está em desfrutar do mesmo talento que ao pai foi dedicado? Trabalhar em plantações de soja sem fim, entre agrotóxicos venenosos e silos infinitos dentro dos quais alguém pode se perder para nunca mais ser visto, a partida rumo ao mar tão sonhada pela prima não lhe parece mais do que um devaneio. Quando ouve que o diabo se esconde num buraco qualquer em uma pequena igrejinha esquecida pelos fiéis, é para lá que irá em busca do que tanto quer. Primeiro, é quase uma piada, uma brincadeira sem maiores consequências. Porém, quando o cerco se aperta, essa se apresenta como a única solução que lhe resta. E a salvação de um passará pela condenação do outro, como uma troca de bastão – e de responsabilidades.
O tal acordo que dá título ao filme é uma ameaça que paira sobre os protagonistas do início ao fim, e a chance (ou não) de se mostrar uma possibilidade real é um dos acertos de Pacto da Viola. Fazendo uso de uma narrativa morosa, que reflete a falta de horizonte daqueles já sem esperança, ao mesmo tempo em que vai construindo sua tensão mais pela manipulação do ponto de vista e pelo poder da sugestão, Guilherme Bacalhao oferece ao seu espectador um exercício de atmosfera do qual o apreço e reconhecimento pode não se mostrar de fácil acesso, mas que se confirma sólido uma vez entranhado na experiência de quem o observa. Trata-se de um esforço contínuo, que por vezes beira o artesanal, mas aponta para um caminho interessante e, se não resulta em uma aceitação incondicional, por certo encontrará os que dele sairão transformados. Como partes de um todo, valorosas se separadas, e de inegável força quando reunidas.
Filme visto durante o 57º Festival de Brasília, em dezembro de 2024
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