Crítica
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Sinopse
Retrato do São Padre Pio, homem santificado que nasceu Francesco Forgione no sul da Itália no final do século 19. Enquanto isso, socialistas e capitalistas disputam a administração de um vilarejo no interior da Itália.
Crítica
Abel Ferrara é um iconoclasta, alguém cujo cinema está a serviço da deposição de certos ícones. Em Vício Frenético (1992), o mais célebre de seus filmes, Harvey Keitel viveu um policial mergulhado em corrupção que tinha epifanias com Jesus Cristo em meio à investigação do estupro de uma freira no altar da igreja local. Foi o suficiente para ouriçar os cristãos propícios a compreender a aparição de Cristo nesse contexto como blasfêmia. Tendo essa fama em vista, era de se esperar que Padre Pio fosse um filme ácido, até pela escalação do controverso Shia LaBeouf para interpretar um dos mais populares santos da Igreja Católica. No entanto, o resultado está mais para uma tentativa de refletir sobre parte da História e nela situar timidamente um homem considerado santo. Aliás, o padre Pio se torna coadjuvante diante do protagonismo (e do maior tempo de tela) das turbulências sócio-políticas que agitam a região italiana da Apúlia. É como se tivéssemos dois filmes caminhando paralelamente. Num deles, Pio parece numa interminável crise de fé que remonta a outros personagens observados pelo cinema em situação parecida. O rapaz que viria a ser considerado bento aparece de vez em quando padecendo por conta das dúvidas e dos fantasmas que o perseguem. Na outra narrativa, homens e mulheres trabalhadores que anseiam por igualdade social são combatidos pelos capitalistas da região.
Em Padre Pio o mais importante é essa tensão entre capitalistas e socialistas logo depois da Primeira Guerra Mundial. Abel Ferrara utiliza uma câmera inquieta, longas cenas mergulhadas na escuridão e uma decupagem que privilegia os planos mais fechados (asfixiantes). Como estamos diante de um realizador que entende tudo e mais um pouco de seu ofício, podemos compreender esse itinerário como a busca de um cinema menos espetacular e mais cru. Algo louvável, a priori. A falta de iluminação, por exemplo, parece ser um aceno ao naturalismo, afinal de contas na Itália rural dos anos 1920 não havia energia elétrica para todos e os ambientes eram mergulhados num breu sintomático desse tempo histórico. No entanto, há o contraponto ruidoso das interpretações empostadas, de certos diálogos declamados e das câmeras lentas que buscam (em vão) enfatizar a dramaticidade. Portanto, de um lado, há procedimentos que parecem refutar o artificialismo inúmeras vezes associado ao cinema e, de outro, justamente existe a adesão a alguns procedimentos que apenas o cinema pode proporcionar com suas artimanhas de manipulação audiovisual. A própria trama parece uma colcha de retalhos costurada com certa frouxidão na tentativa de oferecer uma imagem ampla daquele momento europeu. Enquanto socialistas reivindicam melhorias, capitalistas revidam e o padre Pio sofre na clausura.
Curiosamente (para um iconoclasta), Abel Ferrara evita inserir frontalmente a instituição Igreja Católica como uma das molas propulsoras da resistência ao avanço socialista. As cenas passadas num mosteiro apresentam o Padre Pio aparentemente num processo contínuo de contrição e penitência. Ele é muito menos eloquente ou convincente, por exemplo, do que os padres vividos por Claude Laydu, Gunnar Björnstrand e Ethan Hawke, respectivamente, em Diário de um Padre (1951), Luz de Inverno (1963) e Fé Corrompida (2019). Aliás, ao contrário do protagonismo dos três citados, o Padre Pio não assume a dianteira com essas suas perturbações internas. Ele é conectado (refém das?) às lógicas existenciais-religiosas internas, praticamente alheio à turbulência que ameaça a paz do vilarejo italiano em vias de contabilizar seus mortos na Primeira Guerra Mundial. É como se Ferrara não quisesse que esses mundos (o interno do padre e o externo da sociedade local) coabitassem os espaços cênicos. Então, ele resolve observar alternadamente os dois recortes daquela localidade, sem com isso fazer um reverberar no outro. O resultado é a criação de uma divisão excessiva de atenção, especialmente porque a crise de Pio nem bem representa o egoísmo da Igreja Católica e tampouco um estado de angústia que expõe o sofrimento das ovelhas de sua congregação. O resultado é desengonçado.
Abel Ferrara acaba falando um pouco do nosso presente ao observar essa antessala da ascensão do fascismo na Itália – o regime vigorou no país entre 1922 e 1943. Temendo o avanço dos socialistas defensores do bem-estar social, os latifundiários tramam um golpe para evitar a mudança do poder administrativo local. E uma das estratégias adotadas é colocar em xeque o sistema eleitoral em caso de derrota. O outro é se aliar aos militares para garantir a manutenção do status quo à força se for necessário (familiar, né?). Mais um dado da nossa atualidade está na expulsão dos esquerdistas das terras improdutivas do capitalista que reivindica a propriedade como se ela estivesse acima da sobrevivência dos vizinhos. São momentos em que Ferrara elege vilões e mocinhos para deixar muito claro de que lado está nessa disputa ideológica. Uma pena que ele insista numa encenação frágil que não acentua as tensões capazes de transformar o vilarejo numa panela de pressão. Ouvimos mais do que sentimos esse ponto de expectativa, bem como o exercício da força pelos detentores do poder a fim de manter os pobres num lugar de opressão. Falta a intensidade dramática como argamassa para transformar os diálogos fortes e as situações indicativas numa construção substancial. Enquanto isso, Shia LaBeouf coloca seu talento a serviço de uma figura que termina ainda mais enigmática do que começou, alguém colapsando terrivelmente, mas sem a escala que revele as nuances desse martírio.
Filme visto no Festival do Rio em outubro de 2022.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Marcelo Müller | 5 |
Ailton Monteiro | 7 |
Carlos Helí de Almeida | 6 |
MÉDIA | 6 |
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