Crítica
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Sinopse
O mundo está prestes a testemunhar a Segunda Guerra Mundial. Nenhum lugar parece perfeitamente seguro. No entanto, uma praia quase deserta do litoral sul-americano abriga cidadãos falando de ideologias e paixões.
Crítica
Num país com mecanismos de fomento cultural sérios e menos vulnerável às oscilações dos humores políticos, a cineasta Ana Carolina filmaria quando bem entendesse, não apenas quando as dificuldades de produção ficassem menos proibitivas. Após um hiato de quase 10 anos, a realizadora volta aos cinemas com Paixões Recorrentes, resgate da alegoria como estratégia para falar de política e emoções íntimas. A autora de obras seminais, como Mar de Rosas (1977), Das Tripas Coração (1982) e Sonho de Valsa (1987), situa a sua mais nova trama numa ilha tropical habitada por seres social, emocional e afetivamente à deriva. O português Raolino Pombal (Pedro Barreiro) desembarca na costa brasileira buscando um amor lusitano perdido, a jovem que lhe atingiu o coração antes de partir da Europa sem um rumo conhecido. Ana Carolina registra de modo belo essa chegada, num plano-sequência que contém duas ações subsequentes sem a necessidade do corte. Portanto, há uma transição durante o plano. No começo, dois barqueiros remam aparentemente no vazio do oceano, mas logo se aproximam do navio que transporta o estrangeiro. O reposicionamento da câmera, dispositivo que contempla a cena ininterruptamente, pareia a embarcação gigante e a nanica, testemunhando assim a nova etapa do forasteiro antes de ele saltar. Desde então, prevalece uma aura de sonho/invenção.
A atmosfera que flerta com o onírico se confirma na chegada ao litoral, bem como na forma febril de o homem interagir com as novidades dessa terra carcomida pelo tempo e com sinais evidentes de obsolescência. O primeiro personagem que cruza seu caminho é o fiscal da imigração argentino Chango (Luciano Cáceres), sujeito que parece um burocrata desvairado tentando garantir o cumprimento de seu dever. Na verdade, ele se assemelha a um encarregado de posto avançado que foi esquecido naquele fim de mundo e sobrevive se alimentando das glórias passadas da função em vias de se tornar anacrônica. Aos poucos, Paixões Recorrentes situa outras peças nesse tabuleiro simbólico ambientado na iminência da Segunda Guerra Mundial: Madame Arras (Théresé Cremieux), a artista não menos ultrapassada e encalhada numa promessa de grandeza financeira pelos lindos trópicos da América do Sul; Empresário (Luiz Octávio Moraes), o representante de uma classe ladina que, de certa forma, seduz a europeia com juramentos de grandiosidade no continente mais ao sul da América do Norte e que provavelmente não passa de um enorme picareta; Souza (Danilo Grangheia, destaque do elenco), o dono do bar, dado a manifestações inflamadas, um sabe-tudo do lugar; e Beleza (Iran Gomes), o homenzarrão negro que antagoniza com o português pelo amor da bela Amada (Silvana Ivaldi).
Num primeiro momento, parece que Paixões Recorrentes vai ser, basicamente, sobre um forasteiro deslocado tentando reparar o vínculo amoroso que ele julga em vias de perder. No entanto, a missão pessoal rapidamente perde importância para uma espécie de movimento centrípeto que suga os demais corpos ao centro de um inescapável debate político que envolve direitas, esquerdas, comunismos, fascismos e seus respectivos dogmas. Ana Carolina preserva o clima levemente irreal dessa alegoria que, em certa medida, remete temática, estética e narrativamente aos cinemas de Glauber Rocha (Terra em Transe, 1967) e Manoel de Oliveira (Singularidades de uma Rapariga Loura, 2009). Consciente ou inconscientemente (isso também pode ser uma "viagem" do crítico ávido por correspondências e referências), a veterana cineasta empresta do primeiro o clima febril do choque ideológico que assimila o caos como elemento fundamental. Do segundo, dispõe da obsessão do homem pelo amor da mulher idealizada, um símbolo da necessidade de se apegar aos princípios românticos pelos quais foi criado desde sempre. Ana Carolina é bastante econômica e, para isso, demonstra toda a sua capacidade de fazer muitas coisas circularem em ambientes e lógicas pouco numerosas. Grande parte do filme acontece no bar improvisado à beira-mar, onde as discussões sobre os rumos do mundo ganham ares difíceis de determinar sem alguma margem de erro. As sentenças confundem mais do que esclarecem.
Embora se exceda ligeiramente em algumas sequências verborrágicas – longas excessivamente em certos momentos –, Ana Carolina utiliza a polifonia para pulverizar a atenção entre os vários personagens. Desse modo, curiosamente, enfatiza uma disputa de vozes, expediente comum nas chanchadas brasileiras dos anos 1940/50. Não há propriamente um protagonista, mas vários se debatendo dentro de uma dinâmica alegórica, porém alusiva à realidade que batia à porta do país no fim dos anos 1930. Os relacionamentos entre as pessoas são pautados por conversas, confrontos acalorados e contradições. Por exemplo, vide o homem aparentemente cuidadoso que se revela cultor convicto tanto do integralismo quanto do fascismo. Já o sujeito que diz amar desesperadamente é confrontado por seu posicionamento durante a ditadura salazarista. O rapaz negro que transita pelo ambiente assumindo ares de despreocupado bon vivant carrega nas entrelinhas a herança colonialista que tornou seus antepassados escravizados. Por fim, a diva alterna entre o fascínio e o asco pela terra compreendida dentro do pensamento eurocêntrico como antro de cidadãos de categoria inferior e, por isso, fadado à entropia. Utopias e ideologias se chocam em conversas ora tenras, ora trovejantes, ao estilo de um cinema pujante, avesso a concessões e atrelado à realidade por meio das metáforas.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Marcelo Müller | 7 |
Alysson Oliveira | 6 |
Alex Gonçalves | 4 |
Carissa Vieira | 5 |
Isabel Wittmann | 7 |
MÉDIA | 5.8 |
Eu acho superconveniente as verborragias de Ana Carolina. O filme é lindo. Merece um 9.