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Sinopse

Maristela sonha constantemente com uma criatura emergindo do riacho Pajeú. Intrigada com aquilo, ela começa a pesquisar as histórias do lugar. Os pesadelos não cessam e pessoas próximas a ela começam a desaparecer.

Crítica

Maristela (Fátima Muniz) sonha com uma criatura assustadora no rio Pajeú. Acorda ofegante, transtornada. Na maioria dos filmes de terror, esta professora da escola primária passaria seus dias procurando mais sobre o monstro, buscando-o em livros e na Internet até descobrir a fonte de seu assombro. Curiosamente, em Pajeú (2020), ela compreende que o fascínio provém do próprio rio. Assim, parte em busca de mais informações sobre as águas praticamente desconhecidas pelos moradores de Fortaleza. Ela tenta entender as origens destas águas, seu processo de transformação, os motivos para ter sido abandonado no imaginário coletivo dos cidadãos. Esta constitui a bela concessão poética do diretor Pedro Diógenes ao gênero: visitada em sonhos tanto por uma fera escura coberta de dejetos quanto por um rio de aparência banal, é na verdade este último que fascina Maristela. Entre os perigos do mundo fantástico e aqueles do mundo real, a protagonista volta sua dedicação às ameaças naturais: a violência policial, o descaso com a natureza, o desprezo pela História.

As pesquisas da personagem obsessiva envolvem mapas, visitas a museus, consultas com pesquisadores. O filme transforma uma investigação urbana num terreno de aventuras para esta pacata professora sem ligações familiares, românticas, nem dados relevantes sobre seu passado. A heroína constitui um corpo presente, sem fetiches de imagem ou composição – outro contraste com o imaginário das mulheres dentro do terror. Um dos aspectos mais interessantes do filme se encontra na fusão orgânica do registro documental cru (porque baseado em arquivos impressos, fotografias antigas, explicações de técnicos) com um escapismo lúdico (o monstro do rio jamais ameaça Maristela, nem aparece concretamente para ela). O cineasta aposta no recurso arriscado do encontro entre um protagonista fictício e pessoas reais, que já havia rendido ótimos frutos no também cearense Currais (2019). A personagem interpretada por Fátima Muniz interpela pessoas nas praias, ou nos parques, a respeito do conhecimento sobre o rio Pajeú. O recurso é tão improvável quanto eficaz neste contexto: ele carrega a espontaneidade do documentário enquanto reforça a verossimilhança da ficção. Nestes trechos, a câmera se mantém próxima, à escuta, saltando de rosto para rosto, pronta a captar o que lhe vier pela frente.

Outro questionamento preocupa a professora, e também ao filme: a noção do desaparecimento e do esquecimento. Como as pessoas teriam se esquecido da importância do rio que inunda os arredores, e a partir do qual foi fundada a cidade? “Você tem medo de ser esquecido?”, pergunta a professora. As pessoas se incomodam com o atrevimento, como se Maristela estivesse lançando alguma questão indelicada – análoga ao espanto provocado pela indagação “Você é feliz?” de Jean Rouch em Crônica de um Verão (1961). Há uma beleza singela na analogia entre o rio e as pessoas, ambos percebidos como organismos vivos, em transformação, e passíveis de desaparecimento sem que a sociedade o perceba. O descaso com o patrimônio se torna equivalente ao sumiço de um ser querido – caso de personagens que de fato desaparecerão da história sem deixar vestígios nem provocar indignação. “A história joga pela janela suas garrafas vazias”, diria Chris Marker em Sem Sol (1983). Tanto a direção quanto a montagem abordam com naturalidade exemplar a transição entre registros. O documentário não soa excessivamente rígido; a ficção adota uma linha funcional (vide as eficazes cenas na escola e no bar), enquanto a fantasia se mantém analógica (a criatura humanoide sem efeitos visuais). Diógenes elabora um universo palpável onde os estilos mais díspares convivem sem sobressaltos.

Tamanha fluidez é acentuada pelas atuações e pela construção dos afetos. Em um filme com pouquíssimos personagens, desenvolve-se uma amizade carinhosa entre Maristela e Yuri (Yuri Yamamoto), com quem divide a casa. A cena do elogio aos talentos do amigo, não escutado devido à música no fone de ouvido, ou aquela dos olhares preocupados dele diante da expressão séria da amiga no bar, carregam uma ternura verossímil e atestam o talento de cronista de seu autor. No papel principal, Muniz consegue alternar entre a composição mais afetada diante do monstro (misto de asfixia, pavor, ataque de pânico e mesmo prazer sexual) e a conversa “branca”, neutra, com as pessoas nas ruas. Yamamoto mantém sua dicção particular, a voz não projetada, os olhos baixos e tristes, além de evocar carta saudade quando retorna ao ambiente do inferninho para um karaokê. Este trecho condensa de maneira exemplar a fusão de gêneros dentro do projeto: há algo muito artificial na tela do karaokê, na música e nas imagens exibidas no monitor, apesar de a entrega à música e a interação dos colegas tornar aquele momento plausível. Acima de tudo, existe afeto pela história da cidade (vide o abraço com a pesquisadora), por um rio esquecido, filmado com luz natural, em enquadramentos clássicos.

O cineasta e o diretor de fotografia Victor de Melo nunca se esforçam em embelezar a natureza para melhor defendê-la, tampouco se dedicam a enfeá-la para ressaltar o discurso sobre os perigos da depredação. As pessoas e a cidade se encaram de igual para igual, a exemplo da sequência da praia. O autor tem algo a dizer, mas também tem muito a escutar neste filme-processo, razão pela qual o resultado soa ao mesmo tempo ambicioso e humilde. Pajeú desperta admiração por resolver muitíssimo bem o escopo de seu baixo orçamento dentro das formas propostas. As luzes naturais nos museus e espaços históricos, os planos únicos no boteco vítima de inundação ou ainda as composições básicas na recepção da terapeuta condizem com o despojamento formal do projeto como um todo. O cineasta encontra a maneira mais coesa de transitar entre a história e a História, entre o particular e o coletivo, o real e o imaginário. Alguns dos maiores filmes não são obras ostensivamente chamativas, repletas de arroubos de genialidade ou planos rebuscados. Este projeto surpreende pela capacidade discreta, silenciosa, de propor reflexões amplas em profundidade por trás da aparência de um pequeno “filme de personagens”.

Filme visto online no 9º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2020.  

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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