Crítica
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Sinopse
Decidida a se casar na igreja, como manda a tradição, Paloma economiza para pagar a festa. No entanto, o padre se recusa a celebrar o matrimônio pelo fato de Paloma ser trans. E ela terá de encarar o obscurantismo dos vizinhos.
Crítica
O que Paloma quer? Tudo e nada. Aquilo a que tem direito, é fato, mas também nem um passo além disso. E vai com cuidado, sem afronta ou abuso, porém determinada no seu intento e segura de estar fazendo a coisa certa. Quer ser feliz, obter o reconhecimento dos seus e também de si mesma, aquietando o coração ao agir da forma como sempre foi ensinada, guiada, doutrinada. Ela tem fé, é temente a uma força maior e ciente dos seus deveres, mas também do que lhe compete. Em Paloma, longa escrito e dirigido por Marcelo Gomes e cuja inspiração surgiu a partir de uma notícia que o cineasta leu num jornal, tudo o que a personagem-título almeja é algo tão comum a tantos, mas que a ela se torna uma tarefa quase hercúlea: casar. Ter sua união com o homem que ama registrada pela sociedade e não apenas celebrada, mas, acima de tudo, respeitada. Sofre, porém, por acreditar no bom coração dos que estão ao seu redor. Afinal, se o que vê no espelho é uma mulher como qualquer outra, seus vizinhos, colegas de trabalho e conhecidos, por outro lado, insistem em tachá-la de outra forma: eis, aqui, uma pessoa trans, ou mesmo uma travesti. Pior: há os que a veem como não mais do que um homem com roupas femininas. O detalhe que termina por fazer a diferença. A mesma sutileza, aliás, com a qual essa delicada história é levada adiante até seu desfecho bruto, ainda que realista e, portanto, não desprovido de esperança.
A série de acertos começa com a escolha de Kika Sena (Noites Alienígenas, 2022) para viver a protagonista. Desde a cena de abertura, na qual se desnuda por completo, a atriz se mostra preparada para o desafio que terá pela frente durante as próximas duas horas. Mãe de uma linda menina de 7 anos, é apaixonada pelo namorado, Zé (Ridson Reis, de Ilha, 2018), com quem passa a maior parte do tempo livre que dispõe, entre o trabalho como peã de fazenda, os cuidados com a filha e conversas despreocupadas com as amigas, mulheres como ela que muito já enfrentaram até se sentirem confortáveis em suas próprias condições. São batalhadoras e corajosas, cujos esforços se desdobram duas ou três vezes além daqueles considerados necessários para outros em semelhante situação, porém sem o estigma de uma identidade sexual conflitante com a maioria. E por isso, pagam o preço pelo simples fato de “ousarem” assumir esse viés.
Se faz preciso observar como Paloma se vê dentro desse contexto social, levando uma vida comum, até mesmo normal aos olhos dos demais. O homem que escolheu para si não demonstra maiores constrangimentos por estar ao lado dela, e os ciclos pelos quais transitam os recebem sem maiores ressalvas. Também é fato o desconhecimento da família dele quanto a esse envolvimento, da mesma forma como também não faz muita questão de tornar a relação público juntos aos amigos e colegas de trabalho. Zé e Paloma criaram um ambiente seguro para ambos, no qual são aceitos e desfrutam até mesmo de certa tranquilidade. É, também, um perímetro concedido pelos demais, que os toleram – como será identificado depois – até certo limite, uma frágil barreira que é rompida quando se exige algo que a ela não lhe é concedida. Paloma quer um casamento, com vestido branco e igreja decorada, com testemunhas e convidados. O preço por essa “transgressão”, negada até mesmo pelo Papa, poderá ser alto, mas ela está disposta a pagá-lo.
É tudo tão delicado em sua subsistência que a sensação de que algo pode sair dos trilhos a qualquer momento é perene e constante. Da insistência da amiga com quem passa os dias colhendo melões em acompanhá-la em uma procissão (intolerância religiosa?) à parada estratégica na volta para casa quando o motorista que lhe dá carona se expõe à beira da estrada enquanto urina (assédio sexual?), os perigos e a possibilidade de cerceamento vão escalando até se defrontarem com a tragédia que delas não apenas se avizinha, mas também as confronta. Essa chamada à realidade – afinal, estamos no Brasil, o país que mais mata a população LGBTQIA+ em todo o mundo – oferece aos acontecimentos um pé no chão, uma base pela qual se sustentar, por mais que Paloma se recuse a abrir mão do sonho que há tempos vem cultivando. Em uma cidade grande, numa capital mais cosmopolita, ainda assim a ambição dela ganharia notoriedade e, provavelmente, não seria aceita de bons grados. Imagine, então, como um pequeno vilarejo no interior do agreste irá lidar com essa questão?
Marcelo Gomes e seus colegas roteiristas – Gustavo Campos, que havia trabalhado com o diretor como assistente de montagem do documentário Estou me guardando para quando o carnaval chegar (2019) – e Armando Praça, que explorara temas semelhantes em Greta (2019) – agem sobre o desenrolar dos acontecimentos de Paloma de forma quase cirúrgica, equilibrando com cuidado tanto a necessidade de acolhimento e fantasia que a protagonista demonstra nessa ânsia por aceitação e entendimento, como também apontando os duros caminhos pelos quais suas decisões terminarão por conduzir o casal. Cada escolha representa também uma renúncia, e essa não tardará a se manifestar. Resta, enfim, a partir do cenário desenhado, se resignar aos desígnios dos demais ou manter a cabeça erguida em nome de um querer maior do que qualquer cerimônia ou afronta possa colocar em dúvida. E quando no centro desses acontecimentos está uma figura absolutamente confiante do seu potencial, perceber para qual lado irá seguir é tão óbvio quanto necessário.
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Maravilhoso!