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Sinopse

O pão de cada dia é o objetivo dos despossuídos deste ensaio baseado em obras de Brecht, Adorno, Benjamin e Mário de Andrade.

Crítica

Os letreiros afirmam que este filme-performance adapta textos de Brecht, Adorno, Benjamin, Mário de Andrade. Uma das atrizes do grupo lê "A Padaria", texto nunca encenado de Brecht. A primeira fala, em off, dirige-se ao público burguês: “Vocês que acabaram de comer”, dispara a narração em tom interpelador, mesmo acusatório. Estamos diante de um exercício alimentado por obras clássicas a respeito da desigualdade social e da opressão dos patrões sobre empregados. Não por acaso, o principal conflito gira em torno de uma pequena padaria, onde o proprietário, Massinha, explora funcionários sem pagá-los, enquanto é, por sua vez, explorado por homens mais poderosos. A cadeia cíclica de violência capitalista reflete-se nesta fábula ao mesmo tempo ingênua e raivosa.

Por um lado, compreende-se que o diretor Renan Rovida busque um estranhamento, ou melhor dizendo, um distanciamento digno de uma adaptação de Brecht. Nas ruas contemporâneas de uma cidade grande, uma vendedora de jornais pede “um vintém” por seus produtos, enquanto um dos clientes utiliza moeda atual para contar o dinheiro do almoço, do café e do cigarro. As diversas músicas com letras sociais, criadas pelo grupo, evocam o cancioneiro antigo. Num beco, uma mulher vestindo trapos canta a sua miséria. Nesta mistura entre tempos e épocas, Pão e Gente sugere que o problema persiste, em igual intensidade, há séculos. A miséria denunciada por intelectuais e artistas antigos se preserva em estrutura análoga nos nossos dias. É possível que a opção pelo preto e branco – pouco trabalhado, sem volume nem textura – também decorra da intenção de apagar traços contemporâneos em prol da atemporalidade e da universalidade do tema.

Por outro lado, a encenação óbvia sobre as hierarquias sociais tem dificuldade em se conectar com o século XXI. As diferenças persistem, a exploração também. No entanto, a percepção e as circunstâncias da pobreza são intrinsecamente ligadas à sociedade em que se inserem, aos costumes, à economia e à política, e estes elementos se transformaram sensivelmente desde o ano de 1929, quando Brecht escreveu “A Padaria”, baseando-se numa vivência europeia. A América Latina, e o Brasil em particular, atravessou uma ditadura, conheceu uma ilusão de crescimento astronômico nos anos JK, viveu populismos de direita e esquerda, esqueceu e depois resgatou o fantasma do comunismo, institucionalizou e depois condenou a corrupção, apenas para continuar a praticá-la. O Brasil de 2020, em que este filme é lançado, atravessa um retrocesso social e político marcante, razão pela qual as alegorias amplas sobre lenhadores sem pão soam desconectadas demais da realidade.

Ao mesmo tempo, este filme sobre miséria não mostra miseráveis, o discurso sobre a fome não representa pessoas famintas. A desigualdade torna-se conceito e metáfora, ao invés de uma prática social. Talvez a melhor cena de Pão e Gente venha num curto fragmento em que alguns rostos de pessoas desprivilegiadas desfilam pela tela. Elas estão caladas, apenas encarando o espectador, e jamais se tornarão personagens. Ora, a inserção documental dentro do esquematismo da ficção apenas explicita o abismo que separa aquelas pessoas verossímeis da personagem coberta de trapos, numa representação romantizada da pobreza, diante de um beco contemporâneo. Neste momento, tanto a apática Dona Zougue quanto a voraz Eugênia se tornam fantasias de pobres, simplificações exemplares do tecido social. Assim como as discussões metalinguísticas dos atores a respeito de seus personagens, o procedimento do filme se empobrece na discussão de uma pobreza que não se vê de fato – e que estaria certamente muito próxima, nas ruas populares onde se situa a trama.

Em 2016, a Mostra de Tiradentes apresentou outro filme em preto em branco, formado por esquetes simbólicas para representar a desigualdade: Jovens Infelizes ou um Urso que Grita Não É um Homem que Dança, de Thiago B. Mendonça. Neste caso, havia um gesto de afronta, uma força potente em cada encenação, além de composições belíssimas em fotografia expressiva. Pão e Gente, em procedimento análogo, perde-se na placidez de seu discurso, nos personagens sem psicologia, na inconsequência das ações beirando o conformismo – Dona Azougue jamais se revolta, a morte de uma personagem não surte qualquer efeito na trama. Uma importante briga é filmada à distância, em plano aberto, na calçada da frente, como se a imagem não quisesse se misturar aos tapas, ou como se não fosse problema dela. A cena de injustiça dentro da padaria é filmada pelos fundos da ação, a busca de Eugênia para reparar o jornal roubado fica fora de quadro. O conflito em si, a explosão, é vista sem intervenção, sem pathos. Se o distanciamento brechtiano visava provocar reflexão crítica, esta isenção de responsabilidade da imagem apenas enfraquece a denúncia. Enquanto isso, aqueles rostos anônimos que irrompem na narrativa, calados, pareciam ter muito mais a dizer sobre a desigualdade do que Zougue e Massinha.

Filme visto na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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