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Sinopse

Em 1997, a Argélia se encontra controlada por grupos que desejam transformar o país num arcaico Estado Islâmico. Nedjma, estudante universitária apaixonada pela moda, quer lutar contra a opressão que o governo exerce sobre mulheres. Ela organiza um desfile que desafia as regras impostas pela sociedade argelina.

Crítica

Papicha se passa na Argélia, na segunda metade dos anos 90, quando o país experimentava já há muitos anos, diariamente, as agruras de uma guerra civil. A opressão recai mais pesadamente sobre as mulheres, coagidas pelos fundamentalistas religiosos a se cobrirem com os famigerados hijabs, o véu islâmico que esconde cabelos, orelhas e pescoço, deixando à mostra apenas o rosto. A vestimenta, portanto, é ferramenta de imposição de um sistema patriarcal que canhestramente imputa à sensualidade feminina a responsabilidade por um suposto desvirtuamento moral da sociedade local. Indo na contramão de tudo isso está Nedjma (Lyna Khoudri), universitária apaixonada por moda que se vira comercializando vestidos e demais peças autorais nos banheiros de boates. Há resistência nessa clandestinidade que consiste em modelar corpos diversos, considerados naturalmente perigosos, assim garantindo-lhes os negados e vitais espaços de expressão.

A cineasta Mounia Meddour desvia habilmente de lugares-comuns associados a personagens obrigados a subverter uma lógica opressora. Nedjma não demonstra asco pela fé que, uma vez exacerbada e distorcida ao bel prazer dos moralistas, instaura um ambiente de arbitrariedade em nome de Alá. Em alguns momentos a protagonista evoca a divindade, agradecendo-lhe ou rogando-lhe forças para continuar resistindo. Tampouco a aspirante a estilista cultiva aversão pela própria Argélia. Enquanto homens ao seu redor mencionam a necessidade de evadir à Europa para ter uma vida melhor, ela, a despeito de toda a convulsão que a afeta sobremaneira, faz questão de pontuar o apreço por sua terra natal. Refuta completamente a possibilidade de fugir a outro território em busca de algo que acredita perfeitamente alcançável por ali. Esse é outro sintoma da resiliência dessa personagem de enorme potência, interpretada por Lyna Khoudri, atriz em estado de graça.

Visualmente, Papicha é um filme de composições bonitas, mas que jamais cede à mera estetização. A câmera é quase integralmente condicionada pelos gestos da protagonista, não lhes determinando previamente. Mounia Meddour se aproxima de Nedjma como que investigando atentamente cada movimento dessa garota instada a reagir a estímulos de ordens distintas. Quando ela está eufórica, fazendo mil planos para criar um desfile que a possibilite ressignificar a indignação e o luto, o filme assume prontamente essa “energia”, reverberando-a nas coadjuvantes imediatas. De modo semelhante, nos instantes de tensão, exatamente por esse direcionamento do foco de acordo com as ações, o conjunto ganha contornos exasperantes. Em meio a essa construção narrativa que acentua intermitentemente os anseios das mulheres por emancipação, a trilha sonora, valendo-se de músicas locais e hits internacionais, caracteriza melhor essa geração dos jovens noventistas.

Papicha transpira a vontade de compreender o papel feminino dentro de uma lógica asfixiantemente teocêntrica. Os homens são agentes e/ou perpetuadores de violência. Todavia, em momento nenhum o filme flerta com o maniqueísmo, especialmente pela habilidade de Mounia Meddour para reproduzir uma conjuntura infelizmente rotineira. Se é por meio das roupas que as mulheres tendem a ser submetidas ao jugo dos fanáticos que não enxergam nada à sua frente, a não ser a intolerância pela qual filtram e enfeiam a realidade, é igualmente por intermédio delas que Nedjma e suas amigas afirmam uma disposição altamente corajosa para lutar contra o falocentrismo que as ameaça cotidianamente. O fato da protagonista planejar um desfile apenas com haiks, outro tipo de véu islâmico, é para provar que, para além dos instrumentos está a sua aplicabilidade. O metro quadrado de pano branco que serve para subjugar alguém também pode libertá-la.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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