Crítica
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Sinopse
Por meio de performances de um grupo de artistas LGBTQI+, questões importantes de serem discutidas, tais como gênero, desigualdade social e lutas das classes menos favorecidas, surgem no centro de São Paulo.
Crítica
Alguns documentários compreendem a narrativa enquanto forma de organização: as entrevistas se alternam com imagens de arquivo, ou se acompanha a trajetória do biografado do nascimento ao túmulo, por exemplo. Determina-se a hora de explicar e a hora de comprovar que a explicação é verdadeira (quando as imagens repetem o significado dos letreiros informativos). Para Onde Voam as Feiticeiras (2020), no entanto, prefere mergulhar numa estrutura barroca, explosiva. O filme dirigido por Eliane Caffé, Carla Caffé e Beto Amaral se assemelha a uma festa da qual somos convidados a participar. Como nas melhores festas, existem momentos eufóricos e outros melancólicos; há instantes em que se debate muito seriamente os problemas do mundo, e aqueles em que se fala bobagem com um celular na mão. A reunião entre amigos não possui uma linearidade, nem nos prepara a um desfecho anunciado. Apenas se aproveita o tempo presente, com aquilo que as interações têm a oferecer em sua espontaneidade. Os autores demonstram, em primeiro lugar, a disposição notável de estarem presentes, no meio dos personagens, no meio da rua, no meio de opiniões contrárias às suas. Como em toda boa festa, há lugar para pessoas muito diferentes, lado a lado.
O palco principal é um centro de São Paulo barulhento, desorganizado, com trabalhadores convivendo junto de pastores pregando a Bíblia e pessoas em situação de rua. Neste espaço, Preta Ferreira, Wan Gomez, Vitor Lopes, Mariano Mattos Martins, Gabriel Lodi, Ave Terrena Alves e Fernanda Ferreira Ailish executam performances de dança, música, artes cênicas. A princípio, podemos pensar que os verdadeiros interlocutores daquela apresentação são as câmeras e, por extensão, os espectadores do filme. No entanto, logo descobrimos a interação dos passantes com aquele happening, seja participando, seja observando à distância com curiosidade ou desdém. O grupo de artistas vai até os cidadãos para conversar e questionar. Subitamente, os transeuntes da capital são atravessados por ideias estrangeiras: cisgeneridade, transgeneridade, identidades não-binárias. Busca-se uma confrontação, não no sentido arrogante da lição de moral, como efetua o pastor, e sim da exposição a algo novo e diferente. Tanto a arte quanto os corpos fora do padrão heteronormativo têm em comum o fato de provocarem a tradição por sua própria existência num lugar público. O simples fato de homens trans e indivíduos não binários ocuparem as ruas, cantando e se apresentando, constitui uma forma de discurso político.
Diante de tamanho fervor criativo, a trinca de diretores evita a pretensão de controle: é a imagem que se adequa ao mundo, e não o contrário. As diversas câmeras filmam umas às outras, revelam o boom e os membros da equipe enquanto os personagens sugerem a próxima cena a ser realizada. O cinema se torna a arte do processo, não do resultado final: a reflexão política sobre corpos, liberdades e privilégios se traduz tanto em debates quanto em performance, ao passo que a discussão prévia ao ato possui tanto valor quanto o ato em si. Eliane Caffé, diretamente interpelada pelos jovens artistas, possui a coragem de incluir na montagem diversas cenas em que é confrontada sobre seu privilégio enquanto mulher branca, cisgênero e dotada de recursos suficientes para realizar um longa-metragem. A relação de poder inerente ao ato de filmar outra pessoa se dilui na autoconsciência do gesto: tanto Erika Hilton quanto Vitor Lopes contradizem a cineasta de maneira assertiva quando esta sustenta a tese de possuir o mesmo direito de falar sobre pessoas negras e LGBTs quanto eles. Em outras palavras, o discurso se abre aos pensamentos contrários. Mesmo entre artistas progressistas, há diferenças notáveis de visão de mundo representadas pelo projeto. Os cineastas ainda têm muito a aprender com estes artistas, razão pela qual literalmente sacam um caderninho e passam a anotar os conceitos apresentados.
Ao mesmo tempo, o olhar do trio se revela atento a tudo o que circunda seu tema principal: com múltiplos olhos simultâneos (várias câmeras presentes, filmando coisas diferentes), o filme possibilita flagrar pequenos gestos das ruas. Abraça-se o acaso com uma generosidade desafiadora em termos técnicos. Mesmo assim, as imagens são muito bem filmadas, com atenção especial à luz e à profundidade de campo. Diante de dezenas de pessoas se movendo e conversando sem parar, o som consegue priorizar as falas, os ruídos e barulhos que lhe interessam. A montagem atinge a proeza de articular as performances com os bastidores das mesmas, e então com material de arquivo sobre manifestações, passando pelos ativismos negro, feminino, LGBT e indígena sem separar a narrativa em blocos . Pela forma, o projeto promove uma união simbólica das lutas estabelecidas sobre minorias - aliás, a capacidade de formar alianças com as diferenças constitui um dos temas abordados em maior complexidade ao longo do filme. Cenas como a pequena mudança de foco para mostrar um homem se cobrindo com o lençol-capa, a sequência de orgasmos intercalados com protestos, ou o embate durante a Bíblia (culminando num tenso enfrentamento a Gabriel Lodi) reforçam a impressão de um cinema com o coração batendo forte, os olhos arregalados e a boca prestes a gritar – ou cantar, ou beijar, o que vier primeiro.
Felizmente, o teor despojado da estrutura e das piadas entre amigos jamais distrai a narrativa da luta dos personagens. Renata Carvalho, Judith Butler, Amara Moira e outras pensadoras LGBTQ são convidadas à roda quando se discute a violência física e psicológica, os retrocessos dos novos governos, a dificuldade de (auto)aceitação. Há cenas muito fortes de violência contra indivíduos minoritários por parte da polícia, o que confere peso às conversas e justifica a intensidade das falas e das apresentações. Para Onde Voam as Feiticeiras resulta numa experiência ao mesmo tempo divertidíssima e pesada; anárquica e coesa com a linguagem escolhida; aberta às diferenças sem querer roubar delas o protagonismo. O trio de diretores compreende a fluidez de identidades, sexualidades e manifestações artísticas como um organismo só. O projeto forma um belo par com Bixa Travesty (2018) ao desenhar uma linguagem de rupturas para retratar pessoas em ruptura com as normas impostas. O Brasil inteiro é levado ao centro de São Paulo, com sua curiosidade, generosidade, ignorância ou agressividade. Como em toda boa festa, cria-se uma dinâmica pulsante entre aquelas pessoas e o meio que as cerca. Ao final da sessão, fica a vontade de continuar cantando e discutindo com estes personagens fascinantes.
Filme visto online no 9º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2020.
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