Crítica
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Sinopse
Diariamente, idosos se reúnem nos jardins do Palácio do Catete, residência oficial dos presidentes do Brasil de 1867 a 1960, e que hoje abriga o Museu da República, no Rio de Janeiro. Ao cair do sol, eles cantam em uníssono sobre o amor. Mas, a pandemia do Covid-19 muda drasticamente essa rotina.
Crítica
Uma mulher idosa observa uma partitura, sentada no banco do Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. Ela murmura a melodia, relembra a letra. A câmera se encontra a poucos metros de distância, porém é incerto se a personagem percebe a presença do dispositivo à sua frente. Esta curiosa intimidade entre os espaços público e privado constitui o motor de Paraíso (2021). O diretor Sérgio Tréfaut visita o Palácio do Catete diariamente, observando os grupos de idosos que organizavam serestas nos jardins até a chegada da pandemia de Covid-19. Aos poucos, ele começa a destacar alguns personagens entre os rostos mais frequentes. Sem conversas nem explicações, aproxima-se das performances e desenha uma narrativa sobre o senso de comunidade estabelecido através da arte. As canções clássicas da música brasileira servem de oportunidade para senhores e senhoras declararam o amor ao namorado, a amizade à colega aniversariante, ou para superarem o trauma de uma depressão. A música se torna um personagem tão importante quanto a dúzia de seresteiros representados ao longo do filme.
Em termos de estrutura e roteiro, a proposta soa singela até demais – de todo modo, insuficiente para dar corpo a um longa-metragem. Ora, o cineasta surpreende ao explorar seu conceito em profundidade, da primeira à última cena: ele capta apresentações solitárias ou em grupo, além de investigar a reação do público, a interação com os passantes, a função social desempenhada por este espaço na cidade. A câmera acompanha alguns protagonistas às suas modestas casas, quando se percebe a solidão de tantas pessoas para quem os encontros musicais se traduzem num evento imperdível. Mesmo nestes casos, a música continua pautando a narrativa dentro dos lares e nos becos ao redor do Catete e do Flamengo. É impressionante a capacidade de desenhar o retrato de uma comunidade específica (em termos de idade, geografia, gênero, classe e etnia) somente por meio da observação atenta. A montagem efetua um trabalho coeso ao separar as cenas em blocos isolados, apesar de comunicantes. As canções dominam cada cena, que geralmente dura o tempo de uma apresentação. O ritmo possui a cadência de um show com diversos artistas, ou de uma playlist organizada pelo autor. Outras ordens seriam igualmente possíveis dentro da estrutura não-linear, porém Tréfaut opta pela mais singela: ele se inicia com o Palácio de manhã, e termina numa cantoria noturna.
Paraíso é movido por um olhar de cronista. Dentro de um festival de cinema dominado por filmes sobre ditadura, genocídio, estupro e guerras, a obra fornece uma rara possibilidade de respiro. A câmera possui atenção impressionante aos detalhes cotidianos, a exemplo da senhora com seu pacote de salgadinhos, a outra preocupada com o início de sua canção, e aquele que cochila na cadeira de plástico. O documentário procura a beleza do banal, dos gestos passíveis de identificação: estes personagens possuem vozes envelhecidas pelo tempo, sem aspirações profissionais. Eles cantam pelo prazer de cantar, de serem vistos, de terem a atenção voltada para si. O humor irrompe em interações inesperadas, a exemplo da noiva idosa que empurra seu amado para longe quando este tenta beijá-la, e do funcionário cantando ao aguar as plantas. Graças à montagem generosa, ele também integra o universo das serestas. O cineasta promove um olhar acolhedor, sem julgamentos, disposto a abrir a roda para todos os passantes. O filme produz um espaço seguro de escuta, tanto pela disposição a acolher problemas quanto pela disponibilidade em contemplar a música.
O trabalho estético transparece a segurança de um autor experiente. Por um lado, ele mantém o realismo de mínima intervenção, sem iluminar os espaços nem organizá-los para as necessidades da câmera. A imagem procura um lugar no meio da plateia, ou à distância, permitindo observar os cantores onde estiverem – em outras palavras, é o cinema que se adequa ao mundo, não o contrário. Por outro lado, existe notável cuidado na captação de som e na mixagem posterior, distantes do cinema caseiro ou registrado com senso de urgência. A direção de fotografia aparenta ter uma calma semelhante àquela dos personagens idosos, instalando-se em pontos convenientes, de melhor luz, profundidade do campo e expressividade dos personagens, para então observá-los durante longos períodos. O projeto desperta a impressão de ter gerado extenso material bruto, a partir do qual se estruturou uma narrativa durante a montagem. O resultado é marcado pelo valor da espontaneidade, que só poderia ser capturada por um olhar atento e paciente. O cineasta combina o rigor estético com uma preciosa abertura ao imprevisível.
Em sua porosidade com o real, a obra termina invadida por ele. A certa altura, a produção se interrompe devido à pandemia de coronavírus. Muitos seresteiros faleceram neste período, avisam os letreiros finais. A narrativa que discutia a perenidade através de canções eternas, encontros tradicionais e artistas incansáveis passa a retratar a efemeridade. O Palácio do Catete suspendeu as reuniões musicais neste período, devido aos riscos sanitários. Em consequência, o projeto interrompe a agradável comunhão coletiva para dialogar sobre o próprio cinema, sua responsabilidade com o real e suas limitações. Pelo fato de incorporar estes percalços com modéstia, o documentário sustenta a impressão de ternura e honestidade, tanto com os personagens quanto com o público. Tornamo-nos espectadores destas reuniões sem volta presumida, seja para observar os artistas, os músicos, ou ainda a plateia e os passantes. Tréfaut se interessa tanto ao palco quanto às coxias, evitando o senso de hierarquia entre artistas e entre imagens. Ele oferece um cinema humanista, admirando as pessoas à altura dos olhos, sem idealizá-las, sabendo se retirar de cena quando o material humano não se faz mais presente. Ao invés de forçar uma conclusão, faz do aparente fracasso uma fonte de beleza e reflexão.
Filme visto online no 26º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em abril de 2021.
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Nunca vi um comentário tão perfeito na análise de um filme, como este feito pelo Bruno Carmelo. Meus parabéns aos autores, produtores e todos os participantes deste maravilhoso filme. Me levou a muitas reflexões.