Sinopse
Depois de anunciar à esposa e aos filhos que tem um câncer terminal, um homem praticamente obriga sua família a cair na estrada para participar de um festival de música e assim realizar seu sonho antes que seja tarde demais.
Crítica
Gigante da literatura russa, o escritor Liev Tolstói começou Anna Kariênina (publicada em 1877), uma de suas obras mais importantes, com a seguinte frase: “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. Por esse prisma, as particularidades seriam percebidas durante experiências e/ou conjunturas desfavoráveis. Pensando nisso, é curioso que Parentes parta justamente de um anúncio dramático e de personagens peculiares, mas a fim de chegar a certa universalidade. E que fique claro: isso não é uma exclusividade do ótimo longa-metragem de Ilya Aksyonov. Filmes como Feios, Sujos e Malvados (1976), Família Rodante (2004) e Pequena Miss Sunshine (2006) – exemplos de três cinematografias diferentes – fazem algo bem parecido, ou seja, apresentam o insólito e, aos poucos, revelam comportamentos e traços com os quais facilmente muitos de nós podem se identificar. Senão vejamos. Quem aí não tem tios sem noção, primos inconvenientes, irmãos que pegam nos pés uns dos outros sem motivo aparente, pais e mães ora carinhosos, ora autoritários e repressores? Parentes lida desde o início com o exagero dessas características com as quais boa parte das famílias (especialmente as grandes) guarda semelhanças. E o maior destaque desse time é o protagonista, o fanfarrão e imprevisível Pavel (Sergey Burunov), cuja doença terminal vai servir de pretexto.
E o patriarca dos Kornaukhov tem seu comportamento bizarro naturalizado desde o início. Antes de revelar que é vítima de um tumor cerebral capaz de abreviar a sua vida, ele acorda repentinamente todos na casa dizendo-se eletrizado por uma epifania qualquer. Esposa, filhos e nora finalmente despertam e o encontram dormindo confortavelmente na rede. Eles não necessariamente estranham esse movimento beirando o histérico logo pela manhã. Essa é uma chave para entendermos que as coisas sempre aconteceram mais ou menos daquele jeito por ali, ou seja, a esquisitice é uma espécie de companheira frequente nessa residência prestes a passar por algumas transformações. No entanto, o protagonista de Parentes não dá sequer tempo para sua esposa, filhos e nora digerirem a informação sobre seu tumor agressivo, logo avisando que todos devem se preparar para viajar imediatamente rumo a um festival de música. E o road movie (filme de estrada) serve bem a esse tipo de trajetória – vide os longas citados como similares. Além de existir uma situação X que se modificará em Y depois de várias experiências durante o deslocamento, há a noção implícita de que a unidade familiar independe da casa. Frequentemente utilizamos a expressão “lar” para definir um local físico em que nos sentimos acolhidos e pertencentes. Aqui isso é relativizado, pois o “lar” é estar junto aos seus.
A excentricidade se consolida rapidamente como tempero predominante em Parentes. Já na estrada, o que coloca as coisas nos eixos (depois do começo tempestuoso) é o bizarro atropelamento de um cadeirante veterano do exército vermelho. É ao desmascarar literalmente a pauladas (sim, isso mesmo) o sujeito estirado no chão que a nora, Sonya (Katerina Bekker), finalmente conquista a simpatia do sogro. Essa constatação ajuda a dimensionar do que é feito esse grupo que não deve nada no quesito extravagância aos personagens de Os Excêntricos Tenenbaums (2001) e menos ainda quanto à conduta naturalizada de afetos e grosserias aos tipos vistos em A Família Buscapé (1993). Como também geralmente acontece nesse tipo de filme, há uma questão vital a ser resolvida antes da transformação (morte/partida/despedida). Aqui é a relação conturbada entre o protagonista e seu filho do meio, Sanya (Semyon Treskunov), o que está prestes a ir morar no Canadá com sua esposa e deixar a tradição russa para trás. Ainda que em vários momentos a sucessão de estranhezas prevaleça sobre o vital acerto de contas, o filme apresenta esta como a única dinâmica que realmente está sendo cozinhada com algum tipo de gravidade por ali. O encaminhamento da filha mais nova (que deseja ser cantora) surge apenas como outra peculiaridade.
Já o primogênito e a esposa de Pavel são apoios/complementos quase sem trajetória própria. Parentes enfatiza o seu subtexto ao adicionar outra camada à dificuldade de conciliação geracional. Isso acontece quando os Kornaukhov chegam à casa do pai do protagonista, um ilustre desconhecido para todos os demais. Fica muito claro que essa tríade avô-pai-filho estabelece uma linha contínua de desejos de emancipação que geram decepções e mágoas nos mais velhos. O personagem de Sergey Burunov (num desempeno primordial) tenta exercer como pai a mesma autoridade que rechaçou há anos enquanto filho insubordinado. O cineasta Ilya Aksyonov desenha isso como uma naturalidade das dinâmicas familiares: o atual chefe da casa não entende a rebeldia de seu menino, mesmo ela sendo análoga à sua no passado, porque atualmente desempenha outro papel, o de patriarca. Mas, o que faz desse longa-metragem ser uma delícia é o trânsito entre o estapafúrdio, o non sense e o afetuoso. A falta de densidade psicológica não é necessariamente um problema, sobretudo porque as intenções do filme são claras desde a primeira cena: não se trata de uma produção que mergulha nas minúcias de comportamentos e dificuldades familiares. A ideia é fazer um road movie em que as dores e as delícias dos Kornaukhov caibam numa van e no qual evidentemente tudo se encaminhe a uma bonita catarse.
Filme visto online no 2º Festival de Cinema Russo, em setembro de 2021.
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