Crítica
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Crítica
De onde veio a dança Vogue? Como se construíram os bailes, o cenário Kiki, as “casas” formadas por artistas e dançarinos, e de que maneira duelavam entre si? Haveria inúmeras maneiras de apresentar este microcosmo segregado dentro de outros grupos marginais. Felizmente, a diretora Jennie Livingston opta por um dos melhores caminhos possíveis, visitando estes espaços, conhecendo a casa dos artistas e acompanhando as suas rotinas. Não há narração explicativa, letreiros didáticos ou trilha sonora externa à música dos próprios bailes. Em paralelo, não há um protagonista único, nem mesmo um caso exemplar de superação ou dificuldade. A cineasta evita a tentação de buscar o exótico, o engraçado e o bizarro, observando o modo de ser dos protagonistas com proximidade e respeito. A câmera assume o ponto de vista de quem não faz parte daquele mundo, para então observá-lo silenciosamente, com atenção. A diretora constitui uma presença ao mesmo tempo solidária e intrusa: ela consegue deixar seus personagens muito confortáveis diante da câmera, ao passo que se aproxima até demais das apresentações nos bailes, como se fosse invadir o palco.
Em outras palavras, o discurso se posiciona dentro daquele grupo, captando uma dinâmica impressionante, porém sem tentar se passar por um dos competidores. Há certa humildade no olhar de surpresa que acompanha os contorcionismos dos dançarinos e a beleza das mulheres trans, como se Livingston admitisse estar descobrindo aquele cenário conforme a dança ocorre à sua frente. Diversos documentários partem de um conhecimento consolidado e da vontade de defender ou explicitar um ponto de vista prévio. Este filme, no entanto, adentra os bailes com a motivação de descobrir, pelos olhos da câmera e junto do espectador, a riqueza cultural que se escondia nos bairros periféricos de Nova York no fim dos anos 1980. Talvez pelo teor de deslumbramento, a narrativa impede uma progressão didática e organizada: os personagens falam das casas enquanto a imagem salta para cenas da dança, e então passeia por um centro de compras com uma das dançarinas, e depois retorna à artista idosa que se maquia diante do espelho. Os temas vão e voltam, novos personagens aparecem a qualquer momento, e uma fala durante a noite é completada por uma conversa, no dia seguinte, durante o dia, ao caminhar pelas ruas da cidade. Os letreiros anárquicos ora apresentam cidades, ora introduzem categorias ou subcategorias de desfiles, e ousam mesmo introduzir novos temas no meio dos letreiros finais.
A montagem constitui o elemento mais empolgante de Paris Is Burning (1990). Em enxutos 71 minutos, o montador Jonathan Oppenheim cria as mais interessantes e improváveis associações de imagens. Embora alguns temas se desenhem ao longo da narrativa – os tipos de dança, a formação das casas, o preconceito, a AIDS -, ele evita a qualquer custo a linearidade cronológica e as relações de causa e consequência. O diretor de fotografia Paul Gibson possui farto material filmado em 16mm, capturando os movimentos e cores nos mais diversos ângulos, enquanto Oppenheim encontra ideias criativas para associar os espaços, corpos e falas. A fotografia demonstra imensa capacidade de enquadrar e reenquadrar ao vivo, ajustando-se aos novos personagens que desfilam, que entram pela porta ou se movem diante da câmera. Ao contrário dos diretores que necessitam de controle absoluto da imagem para criar, Livingston permite que as pessoas se movam livremente diante da imagem, fazendo o seu melhor para enquadrá-las durante a ação. Nenhuma interação parece provocada, sugerida ou repetida para as necessidades da narrativa. Quando Pepper LaBeija, ícone dos bailes da época, começa a narrar sua experiência de apresentações, a câmera logo percebe um de seus “filhos” dispersos ao fundo e alterna o foco para ele. Em seguida, volta ao pai da casa, acompanhando a mão que gesticula com o cigarro aceso. Esse tipo de espontaneidade para a criação ao vivo produz cenas de grande beleza.
Ao mesmo tempo, o filme jamais abandona um tom melancólico ao narrar a história retroativamente, sabendo que este cenário empolgante diminuiria, se dissiparia em menos de dois anos, e que alguns personagens morreram durante as filmagens, vítimas de ataques transfóbicos. A alegria dos bailes subsiste como forma feroz de esperança, em contraste com o mundo lá fora: “Essa é a América dos brancos. Tiraram tudo de nós, mas ainda encontramos uma maneira de sobreviver”, afirma uma personagem. Por isso, tantas categorias de dança consistem em mimetizar, ao limite do grotesco, o caminhar de homens brancos, a roupa de mulheres ricas, o estilo das modelos que estampam as capas da revista Vogue. Os personagens possuem plena consciência de se apropriarem simbolicamente do ideal de riqueza que o país não lhes permite ter. Eles são pobres, muitos deles rejeitados pelas famílias, mas dentro destes espaços de proteção, podem ser ricos, ser coroados reis, rainhas, e constituírem o novo ideal de beleza. Dentro de seus pequenos apartamentos de poucos móveis, discorrem com olhar sonhador sobre a vontade de ter uma casa com 42 quartos, como o milionário da revista, ou de se tornar a top model mais desejada do mundo. Eles vivem ao mesmo tempo a beleza do sonho e a tristeza da ilusão.
Assim, o filme constitui tanto um mergulho sociológico na comunidade negra e transexual quanto um retrato mais amplo de um país profundamente desigual e excludente, apesar das bandeiras de “terra dos corajosos e dos livres”, ou de uma nação de “self made men”. Paris Is Burning se tornou ao mesmo tempo um marco do documentário observacional e um caso exemplar para debater a responsabilidade da arte com o material humano. Jennie Livingston foi muito contestada por “se apropriar” da realidade dura destas pessoas sem lhes fornecer qualquer tipo de recompensa, ou ajudá-las quando o filme se tornou um grande sucesso. As críticas que depois viriam a afetar gravemente outros documentaristas (Michael Moore em particular) nos remetem à ética das imagens, sobretudo quando se parte de um lugar de fala diferente daquele dos indivíduos em cena. Por estes motivos, mesmo depois de realizar um filme tão vibrante, Livingston não produziu nenhuma obra digna de nota em 30 anos. Para o espectador alheio às questões extrafilme, no entanto, o resultado atesta a capacidade de criação e reinvenção de sujeitos tantas vezes apresentados no cinema em posição de vítimas ou mártires. Aqui, o corpo trans transborda de beleza, o homem de saúde fraca e com pouco dinheiro se gaba de ser invejado por todos, a prostituta transexual comemora sua feminilidade e passabilidade. Os gestos específicos, termos particulares e frases de efeito foram inúmeras vezes ressignificados pela comunidade LGBT e pela cultura pop. Enquanto documento, o projeto registra os pioneiros de um movimento que luta para existir, até hoje, mais de 30 anos após seu nascimento.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Bruno Carmelo | 9 |
Alysson Oliveira | 9 |
Francisco Carbone | 9 |
Bianca Zasso | 9 |
Chico Fireman | 10 |
Cecilia Barroso | 9 |
MÉDIA | 9.2 |
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