Crítica


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Sinopse

Em Parque de Diversões, figuras anônimas percorrem as ruas em busca de encontros, até que uma delas rompe o portão gradeado do parque da cidade e começa a explorar suas vias. Esse território proibido é, então, semeado pelo imperativo do desejo. Do mesmo diretor de Tudo o Que Você Podia Ser (2023).

Crítica

Um homem caminha pela noite. Um, não. Vários são os que trilham por percursos similares, aparentemente a esmo, mas com um destino fixo em mente. Ou quase isso. Pois esses se direcionam não ao lugar em si, mas pelo que esse espaço representa, proporciona e possibilita. Uma fonte de prazer e hedonismo em meio a uma noite escura e quase impenetrável. No Parque de Diversões retratado por Ricardo Alves Jr., a alegria não é destinada a menores de idade – a programação aqui é voltada a um público adulto e capaz de tomar suas próprias decisões. Se racionais ou não, bom, essa parece ser uma questão menor. Ao cineasta cabe oferecer foco a algo que geralmente acontece longe das atenções dos demais. E nesse exercício ao qual ele e seu público se propõem, o saldo é invariavelmente positivo, ainda que nem sempre de fácil acesso: é preciso não apenas compreender, mas acima de tudo, sentir o que está na tela, seja pulsando, como também em pleno estado de repouso após o gozo.

Em uma cidade qualquer – sabe-se ser Belo Horizonte, mas tal informação é irrelevante – homens de diferentes idades, origens, raças e classes sociais rumam, sozinhos, com apenas um destino em mente: o parque da cidade, de portas fechadas, mas prestes a ser invadido por esta horda de anônimos – e que como tal desejam permanecer – que buscam, uns nos corpos dos outros, momentos de realização, prazer e fantasia. Essa proposta é curiosa, e fala diretamente com o discurso almejado pelo realizador: muito do que acontece está no âmbito da imaginação, do que estes indivíduos, solitários ou não, pensam encontrar e alcançar quando em conjunto. São fetiches, ilusões, alegorias de quem poderiam ser – ou gostariam de se ver como – que podem durar minutos, meros instantes, ou se estender por horas, mergulhando noite adentro como se suas identidades e máscaras sociais tivessem ficado para trás. Aqui não há mais espaço para o faz de conta. É a inversão dessa lógica que se estabelece. O que se vê é como são. E o sonho se torna, ainda que por poucos momentos, a mais pura realidade.

Não há julgamento na visão proporcionada. Mas há um certo pudor, ao menos no início. Leva-se tempo para que as regras desse jogo se estabeleçam. E com o passar do tempo, essas amarras do lado de fora, que nos participantes dessa ilusão se mostram como um todo, aos poucos vão sendo deixadas de lado, e a verdade de cada um finalmente ganha espaço. É um processo constante de desmontagem, de reelaboração dos sentidos e dos anseios. Com isso, a câmera de Ciro Thielmann vai além da superfície, atingindo segredos até então não revelados. O fotógrafo, assim como o roteirista Germano Melo, foram parceiros do diretor no seu trabalho anterior, o drama Tudo o que Você Podia Ser (2023). Estar ciente deste fato é importante, pois estes são filmes que habitam um mesmo universo, quase como se um fosse o desdobramento do outro. Mas se no primeiro havia muito a ser dito, confrontado e refletido, a forma aqui se estabelece em outro campo: é a vez da sensação, do arriscar-se, do que se vive e experimenta sem ressalvas, como se deixar levar por uma emoção que não se explica, nem se resolve de uma só vez. Parque de Diversões é sobre o que se pode, mas também sobre tudo aquilo que está além daquilo que fora somente imaginado.

Em uma das passagens mais marcantes, um homem cego questiona o que está por transcorrer diante dos olhos que nada enxergam. Mas isso, obviamente, não é empecilho para que ele não se permita sentir o mesmo que aqueles ali em ação. Um rapaz dele se aproxima, e começa, primeiro com certa timidez, mas rapidamente desprovido de pudores, a descrever o que ambos estão presenciando – um visualmente, outro sensorialmente. Enquanto apenas observam, sentem-se seguros em suas conformidades – ou assim dão a entender. Porém, quando um daqueles que estava em movimento a eles se dirige, os que antes se pensavam distantes passam rapidamente a fazer parte daquele todo – ou melhor, já havia o pertencimento, o que se dá é uma confirmação. A mesma lógica se repete quando, mais adiante, em um outro ponto dessa geografia difusa pela penumbra e por tantos desejos, um rapaz se contenta em apenas obedecer às ordens que lhes são proferidas. O sexo existe, está no centro dos acontecimentos, e de forma alguma é evitado. Mas ele não é o fim em si. É mais como uma mola propulsora, um portão – tal qual o do próprio parque – que serve para ser rompido e permitir que tudo a seu redor (ou em si) se manifeste. O céu é o limite (ou o sol que o próximo dia anuncia).

Em meio ao tanto que há para ser dito, nota-se uma bem-vinda ausência de palavras, se não total, ao menos majoritária. Dentre inúmeras opções, por bem faz o silêncio – e os rumores, murmúrios, gemidos e tremores – em falar por tudo que é não dito, não expressado, não minuciado. Afinal, o entendimento está posto. E na (quase) ausência de um pau duro, os limites entre o mainstream e a pornografia se mostram difusos, levando a audiência a questionar o propósito dessas fronteiras, a que – e a quem – servem, e se não é mais válido a indagação do que um ponto final. Parque de Diversões não vem para dar respostas, muito menos apontar fórmulas prontas. Pelo contrário, está ali apenas para oferecer luz àquilo que todos sabem, mas a maioria nega, quando não se faz de desentendida. Eis um cinema inconteste, afoito por se mostrar vivo, indignado pelas hipocrisias de uma conformidade tácita, mas também não disposto a fechar portas e propor conclusões. O encanto está não só no visto, mas no experimentado. Pois uma vez na memória, pouco importa se o fato se deu na tela, ou na pele.

Filme visto durante a 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2025

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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