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Sinopse

Matheus, dono de um parque de diversões muito simples do interior do Nordeste, tem o sonho de conhecer os famosos parques dos EUA. De tão admirador desse mundo mágico, ele deu os nomes de Flórida e Stivenspílbi para seus filhos que claro, também são fanáticos por esse universo. Mas, quando essa família finalmente tem a oportunidade de viajar para o exterior pela primeira vez, as coisas não saem como o esperado.

Crítica

Cada linguagem tem suas particularidades, por isso nem todo ator teatral se dá bem no cinema e vice-versa. Quando alguém muito acostumado a um meio, a certas formas de trabalho, se aventura em outra modalidade de expressão, é preciso adaptação às especificidades do novo “linguajar”. Matheus Ceará é um comediante consagrado, domina as tiradas ligeiras e conta piadas maliciosas como poucos no Brasil. Basta ver as participações em programas televisivos, como A Praça é Nossa, para compreender a sua expertise nesse tipo de humor de esquete. Portanto, o fato de ele ser reconhecidamente bom numa área não significa necessariamente que será bem-sucedido de modo equivalente em outras, justamente porque é preciso se adaptar aos meios. Em Partiu América ele interpreta Matheus, pequeno empresário do interior do Ceará que está passando por uma situação financeira complicada. Seu arremedo de parque de diversões – na verdade, apenas uma daquelas lagartas que andam em círculos – está mal das pernas, mas ele continua resistindo às investidas do filho do prefeito que insiste em comprar o terreno. Mesmo numa comédia rasgada como essa, faz falta os personagens serem um pouquinho mais consistentes. Por exemplo, Matheus não é construído em torno dessa noção dos brios necessários para fincar posição e se manter decidido sobre não vender seu único e precioso bem.

Assim como ele, as demais pessoas envolvidas nessa farofada à lá brasileira rumo aos Estados Unidos são rasas, como se falassem tudo da boca para fora e, por isso, parecem arremedos de personagens. E isso diminui consideravelmente a relevância dos aspectos humanos de Partiu América. Outro exemplo dessa displicência que começa no roteiro assinado por Cadu Pereiva é a obsessão da família principal pelos signos estadunidenses. Essa característica nunca é minimamente apontada como sintoma de algo. A casa pintada com as cores da bandeira norte-americana, o hino estrangeiro que ganha roupagem forrozeira, a breguice de camuflar os docinhos e salgadinhos da festa como se fossem iguarias ianques. Tudo isso é mal aproveitado. Basicamente, o filme trata esse americanismo como um pequeno desvio de percepção do que é bom, nunca nem rapidamente triscando na ideia de que a vida de sonhos comercializada por filmes e séries de alcance global é responsável por essa idolatria vira-lata. E não se trata de esperar de uma comédia ligeira o que dela não se pode ter, mas de observar que, em prol da rajada de piadas contidas no roteiro, o filme se esquece de dar substância ao cenário e às pessoas. Entre maracutaias políticas encenadas como se fossem trechos do finado humorístico televisivo Zorra Total e ingenuidades forçadas, a família finalmente segue aos tão sonhados EUA.

No início deste texto, a necessidade de adaptação entre meios foi citada. No entanto, a direção de Rodrigo Cesar opta por um caminho alheio a isso, ou seja, por tentar fazer a linguagem cinematográfica se adequar à dinâmica de piadas curtas de Matheus Ceará e companhia – a produção contém participações especiais de diversos comediantes de stand-up. Isso faz com que o filme fique fragmentado demais, com as cenas obedecendo a fórmula clássica das piadas contadas sobre o palco: setup (a preparação) + punch (quebra ou distorção cômica). A história desses brasileiros nordestinos que miram os norte-americanos como exemplos de cidadania e sociedade é feita de diversas anedotas juntadas com cola frágil, logo escancarando a falta de um interesse cinematográfico, vide as imagens displicentes. Ao privilegiar as piadas, sobretudo a sua mecânica, o realizador abdica de praticamente todo o resto, o que explica a falta de substância da trama, os personagens esquecíveis e a ausência de relevância dos comentários políticos. Diferentemente do que fizera Halder Gomes nos filmes e na série que levam o selo Cine Holliúdy, Rodrigo Cesar não valoriza os aspectos da cultura nordestina por meio do exagero cômico, mas os utiliza como se fossem peculiaridades de matutos que, dentro da lógica moralista, precisam se afastar das raízes para aprender a valoriza-la. As coisas convergem para o encerramento feliz.

Quando nos Estados Unidos, Partiu América parece um comercial das montanhas russas dos parques de Orlando. Em vez de mergulhar de cabeça na atrapalhada incursão forasteira por uma vivência completamente diferente, dentro da qual os personagens se sentem deslocados, Rodrigo Cesar prefere mostrar exaustivamente as pessoas fazendo caretas em brinquedos com um nível de radicalidade perfeitamente compreendido na primeira vez. O diretor havia mostrado semelhante dificuldade de extrair algo de bom do intercâmbio cultural com Lucicreide vai pra Marte (2021). Nessa aventura protagonizada por Matheus Ceará, na qual a baiana Priscila Fantin interpreta uma matriarca pouco importante, senão como censura leve dos planos mirabolantes do marido, tensões entre brasileiros e norte-americanos se restringem às diferenças existentes entre o nosso cachorro quente e o hot dog deles. O trecho do anfitrião militarista abrindo fogo contra os sul-americanos é tão mal encenado quanto a sequência envolvendo um atravessador mexicano servindo chá de maconha para seus clientes ignorantes da situação num caminhão baú frigorífico. A cena das máscaras de oxigênio caindo após o peido fedorento do protagonista no avião cabem num show de piadas, mas da forma como é mostrada beira o constrangimento. Então, não é que o humor predominante seja de categoria A ou B, o problema é a falta de adaptação daquilo que funciona bem num meio a fim de que ele também seja efetivo em outro.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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