Crítica


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Sinopse

Tomas e Marin se relacionam em Paris, capital francesa. Mas, o casal é estremecido quando Tomas começa um caso apaixonado com Agathe, mulher mais jovem que ele conhece depois de terminar seu mais novo filme.

Crítica

Agathe gosta de Tomas. Martin gosta de Tomas. E Tomas... bom, Tomas gosta de Tomas. E de Agathe. E de Martin. Mas, acima de tudo, Tomas gosta de Tomas. Esse detalhe, que se mostra num primeiro instante como sua fortaleza – afinal, como não invejar tamanha autoestima? – será também seu declínio. Pois Tomas gosta do Tomas visto pelos olhos dos outros. Ele gosta daquele que Martin admira, do homem que Agathe deseja. E entre um olhar e outro, ele próprio será descontruído. É alguém perdido, de si e dos demais, e por isso mesmo só conseguirá se encontrar não pelas mãos dos que dele se aproximam, mas quando, uma vez sozinho, deixar de procurar por si em corpos estranhos e começar a olhar para si mesmo, antes de qualquer outra possibilidade. Assim Passagens vai traçando um emaranhado nem tão complicado, mas também longe de uma eventual simplicidade. Eis uma narrativa de apegos e abandonos, movimentos fluidos e indecisos entre uma condição intermediária, confortável, ainda que impossível, e polos opostos, ambicionados, mas nunca atingidos. Ao contrário desta obra, feliz em transitar entre estes caminhos com fácil manejo, sem investir em extremos ou radicalismo. A vida como ela é, portanto.

Tomas, defendido com impressionante desprendimento por Franz Rogowski – um nome ao qual se deve prestar cada vez mais atenção – é um cineasta em ascensão. Daqueles que foram revelados muito cedo, provavelmente antes mesmo de obter o merecimento justo, e que por isso acredita-se dono do mundo. Ele pode ser insuportável num set de filmagens, exigindo repetições desnecessárias e buscando nuances imperceptíveis, atrás de algo que nem mesmo ele sabe o que é, mas que nem por isso deixará de impor como sua vontade final. Uma vez as luzes apagadas, o que se mostra é uma personalidade frágil, de ego inflado e constantemente atrás de uma validação que apenas desconhecidos podem lhe oferecer. O que está ao alcance só tem valor uma vez perdido, pois o confortável não lhe interessa. Eis um homem movido pelo desafio, como se soubesse não digno do espaço que ocupa. Será na sua transformação que o filme encontrará seu maior foco de atenção.

Tomas é casado com Martin, quem se mostra, desde a primeira aparição, como a base sólida do casal. Sob os contornos de Ben Whishaw – ator assumidamente gay e que vem se confirmando como um forte ativista da causa LGBTQIA+, construindo uma carreira quase exclusiva de papeis que compartilham de sua mesma orientação sexual (uma recente exceção foi o oscarizado Entre Mulheres, 2022) – o marido sabe que é o parceiro que necessita dos holofotes, mas não se deixa seduzir por eles. Decide ir embora quando tem que partir, seja da festa, ou do casamento, e assim o faz sem olhar para trás. Não chega a ser motivado por desprendimento: sabe bem o que está deixando. Mas nem por isso permite que algo de si permaneça imóvel. Se convicto da mudança, todo o resto também ganhará novo rumo. Seja na cama, ou na casa que o abriga. Essa liberdade o concede o direito tanto de ir, quanto de voltar, sem que nunca soe incoerente ou volúvel. É movido pela certeza do que deseja. E se aquele que o acompanha não responde na mesma altura, o preço a ser pago será a solidão.

No meio destes dois irá se impor Agathe. A jovem ganha o rosto enigmático de Adèle Exarchopoulos, atriz hábil em manejar emoções sem torná-las óbvias, ainda que compreensíveis. O flerte entre ela e o artista se dará de modo fácil, até mesmo compreensível. A garota estará no lugar dela, a postura dele é que despertará curiosidade. Porém, essa proximidade, que deveria ser casual, um envolvimento sem maiores consequências, aos poucos ganhará contornos mais profundos. E não tanto pelo tesão que flui naturalmente entre eles: é um conjunto de fatos. Martin é um homem sério, e se quem está com ele se mostra mais propenso a um caso passageiro do que a uma união sólida, para trás esse ficará. E uma vez sozinho, será nos braços daquela que nem ama de verdade, mas disposta a recebê-lo está, onde encontrará refúgio. Por quanto tempo, nem mesmo ele sabe. Ou ela, que se mostra feliz diante da nova conjuntura, mas também possui seus limites. E se esses forem ultrapassados, não hesitará em refazer suas prioridades.

O problema de Tomas é que as duas pessoas que ele mais necessita podem até gostar dele, mas precisam mais de si mesmas. Essa é uma verdade que pode ser traumática para o protagonista, mas se mostra a redenção destes que por ele são afetados, atingidos em seus sentimentos, mas destes encontros saem renovados, mais fortes e certos do que buscam para si. Uma confirmação que Tomas não pode lhes oferecer. Passagens é um filme sobre o hoje, e Ira Sachs se mostra tranquilo nessa posição, distante dos exageros de alguns dos seus primeiros trabalhos (Deixe a luz acesa, 2012), receoso em pensar no amanhã como se mostrou a seguir (O Amor é Estranho, 2014), mas ainda assim menos reflexivo do que em sua incursão anterior (Frankie, 2019). Eis um relato do presente, sobre erros e acertos, que mira personagens falhos e indecisos, mas nunca cansados de seguir tentando. E justamente por isso, humanos demais para serem encarados sem julgamentos. Pois estará nessa identificação sua mais profunda natureza – e indelével verdade.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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