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Crítica


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Sinopse

Fábio, Pedro e Carlos. Essa trinca expressa amor e dúvida na mesma medida; vive o presente com semelhante afinco com que olha para io passado. Um ama o outro que se interessa pelo terceiro.

Crítica

Há uma dinâmica muito instigante entre as ausências e as presenças em Passou. Apenas gestos de afeto permitem aos personagens conviverem integralmente no mesmo plano. Assim, o quadro cinematográfico é configurado como espaço geográfico de encontros, não apenas físicos, mas, e, principalmente, emocionais. Pedro (Pedro Toscano) e Fábio (Fabio Alves) demonstram carinho enquanto um deles escreve. A tomada é estática, privilegia a movimentação terna dos corpos unidos num beijo carinhoso que denota intimidade. Há um terceiro elemento na equação, Carlos (Carlos Eduardo Ferraz), aquele que surge num segmento seguinte falando ao indivíduo fora do nosso campo de visão. Há a instauração de um radical processo monológico que perpassa essa narrativa de solidões. Mesmo que a mão do interlocutor, volta e meia se fazendo presente, deixe claro que há alguém ouvindo de forma atenta o que o jovem fala, a falta da réplica deixa o diálogo unilateral. E o exercício é repetido dali para adiante até o ponto que outro aceno carinhoso permite a concreta convivência.

O cineasta Felipe André Silva utiliza, assim, o quadro como uma espécie de delimitador/organizador sentimental. Mesmo quando amantes conversam depois da noite livre para vivenciarem o vínculo sem verbalizadas interdições, há a esquadria milimetricamente colocada para estabelecer uma fronteira. Claro, pois até chegarem àquele momento, Pedro e Carlos passaram por perdas significativas, sendo desgastados pelos eventos que o filme apresenta frontalmente – por meio da verborragia que surge como desnudamento –, mas também nos diversos perceptíveis nos tantos não ditos e pausas. Passou vai na contramão das narrativas hegemônicas que chegam diariamente aos cinemas, aos streamings e ao VoD, principalmente no que diz respeito ao tempo conferido para o espectador se acostumar devidamente com cenários, pessoas, ritmos e texturas, a fim de que ceder-lhe intimidade em meio aos recortes bem articulados com a ajuda de elipses precisas. As idealizações sucumbem frente às instabilidades naturais do viver atravessado por muitas coisas.

Diante da escolha dolorosa de Fábio, o realizador dosa inclusive as distâncias a serem tomadas. A câmera testemunha de longe, sem invadir/intervir. A baixa profundidade de campo sinaliza, por meio do desfoque, uma impermanência prestes a ser consumada no extracampo, ou seja, distante da nossa vista. Talvez o aspecto mais potente de Passou seja justamente essa capacidade de equilibrar os aspectos esgotados pela necessidade circunstancial das pessoas de colocar tudo para fora e os que são eventualmente resgatados/aludidos como fragmentos de passado. Felipe André Silva mantem-se fiel, no mais das vezes, a um ponto de vista, evitando deslocar a perspectiva, a não ser para ajustar-se aos itinerários meio sorumbático dessas figuras atravessadas determinantemente por seus desejos e atitudes mais banais/essenciais. Ele convida à contemplação, em vários níveis, seja no plano longuíssimo de uma rua (para nos familiarizar com o entorno dessas geografias tão importantes) ou diante de alguém deixando-se fluir numa torrente de pretensas certezas cheias de dúvidas.

Existe uma lógica circular interligando Fábio, Carlos e Pedro. O desejo faz um desaguar no outro, algo tão bem harmonizado que cria a sensação deles empenhando frações de si nos elos estabelecidos uns com os outros. Porém, é possível observar também certa fusão, como se os três fossem, no final das contas, pedaços de um mesmo elemento hipoteticamente indivisível. Nesse sentido, os extensos minutos de vislumbre de procedimentos absolutamente prosaicos, vide a singela organização das compras na geladeira, são tão ou mais reveladores do que as falas extensas. Essa simetria incomum sustentada na dilatação do tempo cria, apesar das aparentes discrepâncias, uma relação umbilical entre o dito e o mostrado. Tanto que nos últimos minutos as estâncias até ali superficialmente divorciadas ameaçam fundir-se como sintoma de possibilidades. Mas, como dito acima, detalhes deixam à vista que a desfragmentação total é impossível nas observações dessas tentativas árduas de equacionar anseios essencialmente íntimos e a vontade de fazê-los funcionar de modo dialógico.

 

Filme visto no 4º Festival Ecrã, em agosto de 2020!

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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