Crítica
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Crítica
A valorização do ato de contemplar é um elemento primordial no cinema de Jim Jarmusch. Mesmo em suas reinterpretações de gêneros – o faroeste em Homem Morto (1995), os filmes de máfia e de samurais em Ghost Dog (1999), os contos de vampiros em Amantes Eternos (2013) – o cineasta norte-americano sempre insere espaços para a observação silenciosa de eventos rotineiros e aparentemente banais. Essa característica, que o acompanha desde Férias Permanentes (1980), ganha uma nova e contundente representação em Paterson, longa que narra o dia a dia do personagem-título, vivido por Adam Driver, um motorista de ônibus cujo passatempo é a poesia. Entre o itinerário do trabalho e as anotações em seu caderno de poemas, Paterson leva uma vida pacata e feliz ao lado da esposa, Laura (Golshifteh Farahani).
A importância dada por Paterson às pequenas coisas sintetiza a visão de Jarmusch sobre a condição humana, afinal, a maior parte de nossa existência é composta por momentos triviais, que mesmo assim não se fecham por completo à possibilidade do extraordinário. Do registro episódico de uma semana, que dá ares de crônica à narrativa, Jarmusch extrai a poesia do cotidiano, preenchendo a tela e as páginas escritas pelo motorista, ele que busca inspiração em sua própria vivência – o relacionamento com Laura, sua marca de fósforos preferida – e nos fragmentos das histórias que ouve dos passageiros durante as viagens. O encanto dessa singeleza temática é traduzido nos versos criados pelo poeta Ron Padgett e que Jarmusch apresenta ao público não só pela voz de Adam Driver, mas também pelas palavras escritas na tela.
Esses versos, repetidos com interrupções e alterações conforme Paterson os desenvolve, estão ali precisamente para que o espectador direcione seu foco, seu tempo, para a leitura. Uma estratégia adotada por Jarmusch para que os significados dessas palavras possam ser absorvidos em sua plenitude, numa clara afronta à efemeridade do bombardeio de informações que atingem, muitas vezes sem ser efetivamente assimiladas, a sociedade contemporânea. Paterson, assim como Jarmusch, parece caminhar sozinho em meio a essa realidade, enquanto as figuras que o cercam representam o outro lado, como o fiscal da garagem sempre envolvido em inúmeros problemas que “você nem quer saber” e, principalmente, sua esposa, que ao seu lado forma um verdadeiro Yin-Yang de personalidades.
Ao externar sua paixão e criatividade em diversas atividades – fazendo cupcakes, criando peças de roupa e de decoração, sonhando em ser uma cantora country – Laura exala uma intensidade que se contrapõe ao comportamento introspectivo de Paterson. Enquanto ele entende seu talento como uma forma de expressão íntima, ela acredita que sua poesia deva ser compartilhada com o mundo, pois vê no marido um potencial genuíno, que talvez sirva como compensação de suas próprias frustrações. Porém, apesar dos perfis conflitantes e da natureza passivo-agressiva da dinâmica, existe um sentimento sincero nas ações de ambos que faz com que a relação funcione, ao contrário dos outros exemplos presentes no longa, como Doc (Barry Shabaka Henley), dono do bar, e sua mulher, ou Everett (William Jackson Harper) e Marie (Chasten Harmon), frequentadores do local.
Para completar a imersão nesse universo contemplativo, Jarmusch dá ao espaço – a cidade de Paterson, Nova Jersey - o mesmo tratamento cuidadoso que dá às pessoas. Pois Paterson, o personagem, se confunde com o local onde vive, não só pelo nome, mas pelas qualidades particulares escondidas por trás da simplicidade: as belas paisagens naturais, as celebridades locais, como o comediante Lou Costello e, especialmente, o poeta William Carlos Williams – inspiração máxima do protagonista – e os fatos marcantes assinalados nos recortes de jornal nas paredes do bar. Nesse cenário, Adam Driver se insere com extrema leveza, como uma figura que, apesar da conduta discreta, se destaca por sua presença singular. Com uma atuação minimalista, mas ainda assim carregada de sentimentos, o ator compõe um tipo que exala uma fina melancolia aliada a um humor puro.
A realização de Jarmusch acompanha esses traços de Paterson, através da fotografia solar, dos diálogos sutilmente cômicos e de piadas mais diretas, como as envolvendo o cachorro do casal. Com todos esses elementos em mãos, o cineasta transmite a sensação de que Paterson carrega um desejo reprimido relacionado à sua arte, prestes a explodir, ao mesmo tempo em que o conformismo com sua vida despretensiosa soa sempre honesto. O fato de não ter um celular, por exemplo, não surge como um ato unicamente crítico, pois ele não pretende negar os benefícios da tecnologia. O objetivo é o enaltecimento, sem extremismo, da beleza encontrada no básico e nas imperfeições – como os cupcakes de Laura – que contribuem para transformar a arte – cinema/literatura – em experiências sensoriais.
Para isso, Jarmusch também recorre à fantasia, ainda que não a assuma abertamente. Nas coincidências que ligam certos acontecimentos – a garota que lê um poema para Paterson, lembrando seu próprio estilo, sobre uma cascata, local onde ele se refugia para escrever – ou nas seguidas aparições de gêmeos após Laura lhe contar sobre um sonho envolvendo o tema. Quando resolve quebrar a constância da existência do motorista – o relógio que o faz acordar atrasado, o ônibus que quebra, o incidente no bar, outro com o cachorro, o encontro com o poeta japonês - o cineasta recorre a uma atmosfera quase kafkiana, em chave amenizada, porém ainda capaz de ter o impacto necessário para simbolizar um reinício para Paterson.
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